A Vida é um Segredo de Deus Sussurrado Numa Noite de Chuva

No último feriado universal eu e meu companheiro fomos tomar café da tarde nos meus pais. Quando meu progenitor começou seus monólogos sobre aviação, agricultura e trabalhos eletro-mecânicos, fugi com minha mãe para revirar reminiscências amareladas pelo tempo… Encontrei um certificado de que minha mãe estudou artes com o Teatro de Arena de Porto Alegre! Me espantei porque “de quando em vez” ela acha bizarra minhas saudades do palco. Depois encontrei comprovantes que meu pai começou fazer o ensino médio na Educação de Jovens e Adultos (EJA), mas não terminou. E é na modalidade EJA em que atuo hoje em dia, muitas profissões depois do meu começo nessa estrada profissional. Ele volta e meia diz para estudar e fazer outro concurso, quando de tempos em tempos não aguento mais burocracia e distância do trabalho. De qualquer modo, achei curioso termos conexões onde ouço reclamações ou palpites díspares do lado deles.
Depois que meu marido e meu pai viram uma Globo Rural e outra revista da Fapesp (eu sou cabeçuda, mas meu pai “é falta de educação”), subimos na moto para voltar. Tinha começado um toró, mas não cogitamos desistir da motoca, por ser perto demais e também porque as roupas de chuva da garupa quebrariam um galho durante pouco tempo. Devidamente paramentados como dois motoboys de entrega de comida, começamos a voltar. Eu já estava com saudade de sentir o ar no rosto sem máscara contra “pandemônia” há dias. Como a moto estava em movimento, a minha caiu para o queixo e senti a garoa lavar meu rosto. Uma sensação de contentamento por tão pouco tomou conta de mim. Afinal eu nem precisava das visitas às cachoeiras em férias e recesso (que de fato não rolaram no isolamento) para relembrar essa gratidão e deslumbramento, que podia ter a ver só com estar viva na quarentena! Minha saudade de fazer algo na rua era tanta, que até me ensopar na moto me inundava o espírito
O farol fechou, meu companheiro parou e quase não havia outros carros atrás da faixa de pedestres. Ouço uma voz: um moço simples se aproxima. Ele tenta conseguir algum trocado porque queria ir ao Bom Prato. Lembro que o governo estadual fechou o jantar nesse restaurante social, fuço a bolsa, encontro um porta moedas pequeno e despejo tudo na mão dele. Onde ele encontraria algo aberto para uma refeição? Era um dos poucos feriados em que tudo para mesmo…
Poucos minutos depois, o homem do farol volta. Havia encontrado um “anelzinho” que minha mãe deu há muito tempo e parei de usar porque é cristão, mas já me encontro na fase dispersa entre a macumba e o budismo. O cara devolveu preocupado porque podia ser de compromisso e a gente sentiria falta longe e tarde demais.
Fico tão tocada que volto a usar — muito embora não compartilhe da mesma fé da minha mãe. Sigo achando mórbido esse hábito cristão de contemplar o “filho do omi” numa sofrência de cortar o coração na cruz. Afinal, de alguma forma o divino me soprou fôlego, ânimo e sensibilização enquanto cruzávamos a chuva numa noite meio vazia nas ruas. E não é disso que se trata a vida, no primeiro dia do ano ou ao longo dele?