Ao Pé da Árvore Cabocla

O hiato das férias me abriu um espaço para revisitar a caixa de palha e suas memórias. A ideia era escolher objetos de afeto para me representar num texto de apresentação duma oficina misturando elementos cênicos e audiovisuais. Desavisadamente voltei às cartas do meu avô. Há décadas eu e minha mãe fazemos visita de médico em seus escritos, desde que ele morreu. Conseguir lê-las depois de muito tempo me lembra como ele nunca me esquecia e evoca o cheiro do café, da terra vermelha e da chuva, que o norte do Paraná já não tinha quando revisitei há uma década. Gozado lembro que quando começamos o uso dos e-mails ele enviava carta por eles lá da máquina de café em que trabalhou, mas só encontro as manuscritas e as datilografadas. Estas últimas tem cartas meio apagadas e mais visíveis, nas primeiras ele reclamava que a fita da máquina estava gasta. Ele falava do clima porque como diz minha formadora griô a senhora tempo determinava colheitas, perda de plantio e se bobear, ainda impactava na exportação. Algumas cartas tinham o papel timbrado do escritório de exportação de café. Me espantei: acho que o avô era mais esperto do que lembrava — sempre que vejo colegas falando do trabalho com exportação, acho qualquer coisa de grego, porque sou alguém da poética mesmo. Meu avô Renério além de deixar o nome dele no neto que hoje faz as vezes do irmão que não tenho, falava do orgulho de mim, desejava um futuro de sonhos e — pasme! Quando comecei no jornalismo admirava meu empenho e tinha dó do quanto já me debatia nos primeiros computadores. Aparentemente nada passava batido ao seu olhar de poeta. As cartas levantam tantas outras lembranças lá do rodapé de Londrina: o bolinho de chuva — não posso ver uma tigela, quero logo atacar tudo! As poesias e crônicas com as quais ele encheu cadernos e mais cadernos, seus livros improvisados, que certamente me inspiraram criar meus primeiros livros caseiros na infância. O pique dele puxar bloco de idosos no Carnaval, ou vir sozinho do Paraná pra cá e preocupar minha mãe, ser pé de valsa nos bailes da saudade… Tudo que as pessoas associaram ao saudoso ânimo de fazer tudo que já perdi. Devo a ele meu ímpeto investigativo — quando os alunos perguntam de onde tiro tantas histórias ou quando reencontro colega da adolescência ou infância que não lembra de onde nos conhecemos. Meu avô chegava em casa e pelo vintage 102 achava parente e amigo que não via desde a juventude. Imagine! Hoje não conseguimos telefone de órgão público pelo retrô serviço de auxílio à lista… Com este jeito para levantar nomes, pistas, números e contatos. meu avô Renério desenhou nossa árvore genealógica levantando muitas gerações atrás. Lembro de perguntar em que ramo tinha alguém de fora, mas ele só encontrou do Goiás e jurava:
- Essa família é caboclo com caboclo!
Deve soar bobo, mas quando visitei o Rio e Salvador e os vendedores de serviços turísticos tentavam me oferecer passeio em quatro idiomas diferentes, lembrava dele explicando a árvore cabocla: não tem parente de fora. Um pouco por conta dele, outro tanto pelas narrações que faço e também por querer levar ao chão de escola as narrativas originárias que não tomei contato pequena, fui em eventos indígenas e quilombos. Num deles, o Remanso, na baiana Chapada Diamantina senti que não ia só atrás da história, mas também de quem somos nós, os “desbotados com ranço dos europeus”. Os caboclos se chamam de parentes como os indígenas, recebem generosamente feito os quilombolas, se valem das ervas para curar, fazem comida caipira, entre outras coisas que já não tenho palavra para contar, mas emociono de novo e de novo, entre uma foto e outra, um texto e uma carta. Só recentemente descobri a parte boa do rastro português: a influência nas danças Reisado e Congada. Em meio às vivências e levantamentos familiares, descobri que uma das avós — a que em São Paulo “só” rezava — era benzedeira. Laços com um Brasil Profundo do qual sinto falta e ao mesmo tempo não sei do que…! Por essas e outras, percebo que a ferida do colonialismo é tão intensa que dá dificuldade de nomear. Meio que roubaram quem somos.
Vô Renério não viu meus livros chegarem. Se já tinha orgulho da jornalista na corda bamba que fui, como seria com meus infanto-juvenis ou coletâneas adultas? O que acharia do novo LGBT Os Meninos que Queriam Rodar que em março “chega chegando”? Entre cartas amareladas e meus livrinhos old fashion demodê me pergunto, tento escrever, termino a semana fugindo do sol para postar dele e enxugo os olhos. Lembro da avó Cida, da rede na varanda, dele se pendurar nas árvores do quintal e minha mãe puxar a orelha pela traquinagem. Mas sobretudo lembro do desejo em sua partida que avô fosse pra sempre.