Colocando a dor nos braços de outra sensibilidade criativa
O luto me fez descobrir os momentos em que linguagem nenhuma é suficiente para ressignificá-lo. Nem para artistas altamente sensíveis como eu. E olha que na véspera da passagem do meu pai fiz vídeo poético, algum tempo depois que ele partiu fiz prosa saudosista, comecei o projeto do livro Falando Sozinha com meu Pai com meu companheiro, cantei para ele e contei uma história recente que descobri sobre seu Benê. Então resgatei uma ideia antiga: me tatuar com desenhos significativos.
Dei as ideias para Clarice Silva no fim do ano passado: por trecho de música do tio griô que perdi em novembro e dos meus amores: percussão e cultura populares, literatura, viagens e teatro. Levaram meses, porque ela é artista e arte terapeuta, então foi uma criação de obra de arte personalizada. No antebraço conversamos enquanto tatuava e não foi a choradeira que imaginei. Mas pior que a dor achei o pós: sem piscina, ovo, peixe… Difícil! Porém essa tatoo foi tranquila, como minha relação com tio Arantes. Saí com essa impressão: o que é essa dor para quem perdeu os dois pais, já teve cólica de intestino, se depilou e fez mamografia? Catzo nenhum!

Quando fui ao ateliê dela pra fazer o primeiro desenho, ela tinha me proposto também um desenho sobre a perda do meu pai (que foi em fevereiro). Um deles veio para ela num sonho. Tô bem mulher de junguiano: tudo é simbólico! Mas esta cismei de fazer na batata da perna. SEN-HOR! Ali doeu visse? Na verdade foi uma coleção de choquinhos em que algumas vezes não sentia a panturrilha e sim, o peito do pé e atrás do joelho. Parecia que ia fazer feito meus rompantes em depilação: quando perguntam se está bom eu levanto e saio com tudo torto porque passou do limiar de dor. Segurei a onda porque pensava que a dor tinha a ver com nossa relação, que sempre foi dos gritos aos abraços beijados. Acho que também respirei na esperança de dormir, porque realmente dava sono onde deitei pra tomar jatinhos de tinta numa agulha — mas tenho sono em lugares estranhos: podólogo, dentista e no avião em turbulência. De qualquer modo, penso que atravessei essa sentindo a boniteza que é minha pele virar tela para a arte da Claire se aninhar.

Tive a impressão que terceirizei as dores para outra pessoa simbolizar — a gente só troca a dor, claro que não resolverá nada, mas já é um aprendizado novo e rala de outra forma. Lembrei duma amiga do meu marido que acha nonsense quem se tatua com anestesia, porque tem que passar a dor ea febre que ela teve. Talvez ela comesse porco ou entrasse na piscina, não sei… Como ficar sem cloro está difícil de forma sobre-humana, já voltei ao ovo e peixes (até porque um amigo doutor em biologia ensinou que nenhum estudo de cicatrização a associa à alimentação). E ainda assim, para meu modo transtornada de lidar com o luto + deprê da minha mãe, está osso. Sigo tentando ver como processo, mas que saudade do lúdico processo cênico!
Tenho a percepção de que só faço outra talvez daqui uma década. Para mim tinha que ser significativo porque quando virar um maracujá de gaveta e olhar meus futuros borrões, sorrirei pq o significado não foi embora, só virou gratidão e alegria nas lembranças. Do tio já virou isso, pela intensidade foi até rápido. Ou fui atropelada pelo luto do meu pai, que fomentou a perda de graça na vida da minha mãe. Não sei. O que com certeza faço questão é o quadrinho com o rascunho da outra ideia de tatoo (substituída pela do sonho da tatuadora).
