Como sobreviver a 15 Dias sem Celular

Francine Machado De Mendo
6 min readJan 28, 2021

Eu e meu aparelho já tínhamos nos estranhado no começo da nossa relação. Na época consultei o seguro, a previsão era mesmo um mês em conserto, milhares de bairros de onde moro pra lá (para quem vive em São Paulo, cada região é um mundo à parte e rende umas viagens meio novelescas…) e por isso mesmo, desisti.

Tivemos uma merreca de aulas, a pandemia nos atropelou e daí que não deu pra encostá-lo arrumando né? Foi atender estudante, coordenador, diretor e amigos do trabalho de manhã, de tarde e de noite. Uma rave de trabalho! Me senti voltando à redação. Tive até medo de terminar num plantão… Tolerei os defeitinhos administráveis do Samsung, mas quando começou a apagar do nada, fui me trabalhando porque teria que pará-lo em conserto. Ainda dei uma de moça precavida: planejei enviar à assistência nas férias, não morreria do coração com um detox digital entre o recesso e esse aguardado descanso escolar.

Doce ilusão de quem, inocente que só, acredita nas imperceptíveis boas perspectivas escondidas além do arco-íris. No meu caso, acreditei nos prazos informados pela seguradora para correio, assistência, aprovação deles para o conserto, meu pagamento do sinistro e devolução. Não informaram que poderia chegar, não ter peça e o celular ficar dez dias esperando que a peça fosse entregue — e eu também não cogitei. Essa canseira aconteceu comigo, com a seguradora Zurich e com a assistência HelpCel. Nesta quinta já telefonei à seguradora para reclamar que nós servidores levamos a fama de enrolar e que as repartições públicas que demoram a atender, mas certamente nunca resolvemos questão nenhuma com essa pasmaceira deles. Já questionei, escrevi para eles, mas me dão sempre um perdido diferente, acrescido do prazo para a falta de peças e consequente adiamento do conserto. Nessas horas, sentimos que colam em nossa testa dezenas de adesivos: trouxa, tonta, desavisada…

Bem, ao menos no início desse processo, na primeira semana de janeiro, logo após despachar o aparelho no Correio, as sensações eram outras. No começo a gente percebe que se movimenta como quem vai se atualizar no celular, pra depois se lembrar que está “na oficina”. No meu caso, pelo menos, parei com esses tiques de abstinência rápido e criativa que sou, já toda trabalhada na ocupação terapêutica e educativa à lá quarenteiner: mantive os exercícios, respirei, criei, embarquei nas séries pra desanuviar, estudei aleatoriamente, até que… Matei saudades da pedagogia griô num encontro EAD com pesquisadores, artistas e professores que estudam, divulgam, valorizam, se encantam e interagem com os saberes da cultura popular e tradição oral. Até aí, nada de novo sob o sol: fiz encontros na associação deles na Chapada Diamantina há dois anos. Mas como estamos nessa espécie de isolamento sem fim, descobri no estudo sem o celular a gente patina. As salas e transmissões eram divulgados mais rapidamente no WhatsApp, recebia depois no messenger, Instagram e e-mail. Conclusão: nunca caía na sala que queria, como via depois onde cada mestre se apresentaria, acompanhava programações alternativas ao que planejei inicialmente. Até aí, como terminei levantando e partilhando minhas raízes,tomei contato com minhas paixões e trabalho e ainda lidei de maneira meio mística: estudei o que “era para ser”. Como foi a maratona educativa/ artística com mais professor carismático que fiz online, deu pra relativizar os desencontros todos.

Dias depois, para voltar à academia na qual verificava antes em que dias e horários estavam as aulas que me interessava, descobri que sem celular as informações ficavam truncadas. Precisava ligar antecipadamente, mas todas aulas que conferi, eram de modalidades diferentes do que me informaram. Aparentemente nos perdemos todos na comunicação fora do zap

Para “desestressar” um pouco desses murros em ponta de faca, medito. Mas antes usava um aplicativo gratuito, com práticas guiadas e às vezes, sons relaxantes. Bom, sem o celular, voltei às conduzidas usadas há tempos no YouTube. Mas estranhei as propagandas entre um respiro e outro. Tá bem: para essa desconcentração encontrei um meio termo no ar num podcast do Spotify.

Foi quando surgiram as contas do mês: enferrujei tanto do auto atendimento bancário, que levei algumas idas e vindas pra encontrar soluções para as contas e depósitos, porque o app facilitou tanto a vida que nunca mais fiz diferente. Entre ligações, planejamentos de retornos ao centrinho do bairro e negociações com fornecedores mais próximos, joguei a toalha e pedi arrego para meu companheiro, seus aplicativos e celular. Nossa parceria inicialmente aconteceu sem percalços.

No meio desse caos, tive que buscar remédio na Farmácia de Alto Custo, mas sem agendar pelo app deles, demora muito e é arriscado nessa pandemônia. Lá, só com check in recebemos senha para um atendimento rápido. Fui cedíssimo e pela primeira vez, emprestei o celular do meu parceiro de isolamento.

Mas quando tive que ajudar uma amiga pelo app do banco exclusivamente digital, no qual mantenho minha conta jurídica, a demanda do celular dele deu uma ampliada bem quando meu marido tinha mais estudos, trabalhos… Para preservar meu casamento, cacei lugares para alugar um aparelho: sem sucesso. Já sem ter para onde correr, falei com assistência por assistência da cidadezinha do ABC ao lado de casa para encontrar um aparelho usado à venda. Tristemente descobri que o negócio da maioria é vender iPhone usado. Nenhum em conta, obviamente! Quando finalmente encontrei um celular razoável, me planejei para resolver um sábado medianamente ocupado e depois comprá-lo, minha mãe me ligou, colocamos a prosa em ordem e… Ela me ofereceu empréstimo do celular dela! Não sabia se respirava aliviada ou pedia orçamento [rindo de nervoso]

Fizemos escambo de problemas há uns dias rs Mas de fato ela esquece, o celular entope de gente mais conectada mandando mensagem e depois simplesmente fica coisa demais para por em dia. Já nós… No começo achava que se minhas amigas ficassem no vácuo sei lá, não ocorreria me procurar de outras formas. Então avisei a meia dúzia mais chegada pelas mídias sociais do conserto e seguimos parte das conversas em outras vias. Depois vi que colegas que não avisei e que não me viram postar no Face que estava sem o Samsung, me procuraram noutros espaços virtuais quando ficaram sem resposta. Fiquei até emocionada com amiga me ligando no fixo, sem ser telemarketing, nem era minha mãe! No começo do uso do aparelho dela, atualizaram mais de 60 amigos, grupos e colegas com mensagens não respondidas! Só no grupo do encontro de estudos virtuais que fiz, mais de mil mensagens! Coloquei em dia o que deu, me conformei que não resgataria tudo porque em algumas conversas constava que as mensagens estavam baixando, mas nunca chegaram. Percebi que trocamos muitas das conversas sobre o que passamos por envio de emojis, músicas ou vídeos que não necessariamente falam de nós ou matam a saudade.

Aparentemente a pandemia nos deixou mais carentes, talvez pela falta de encontros, mas também pela construção social que faz com que a maioria das mulheres tenham uma carência que nos constrange ou nos põe em ciladas — mais isso é prosa para horas de mesa de bar. Entre meu detox e a impressão de que precisaremos dar check in na padaria para trazer pão para casa, que inveja pouco branda dos pais e tios desconectados! Aliás descobri que com pouco domínio da tecnologia é que se fazem fotos e filmes conceituais espontaneamente — só não fiz posts irônicos porque meus alunos me ensinaram os perrengues de não dominar internet e dispositivos.

Sabemos da necessidade de desligar do mundo virtual, mas por uma férias sem sinal no meio do mato temos a saúde mental de volta. Quando dura mais que uma viagem, não resolvemos mais nada facilmente sem nossos aparelhos! Estou tentando não ficar tão grude ao emprestado pela minha mãe, porque viramos uns dependentes disso, mas e saudade dos amigos que não vemos há quase um ano, a gente põe onde? Só o padroeiro dos inconformados nesse vício digital saberia dizer…

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Written by Francine Machado De Mendo

Brincante,professora de artes na EJA escritora,"gateira",contadora de histórias,nadadora viajante,escritora, macumbeira,pesquisadora e batuqueira.

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