Francine Machado De Mendo
3 min readSep 20, 2021

--

Contravenção cênica

Imaginei que minha primeira saída pós imunização trouxesse emoções represadas depois de levar as duas doses da vacina para passear — ambas já rodando a todo vapor aqui dentro. Ou talvez um amontoado de emoções que não cabem mais em mim — quem sabe um retorno ao terreiro depois desse mais de ano e meio sem encarar muvuca? Tinha que ser aglomeração significativa… Mas a real é que pegar trem e dar aula de máscara tem me deixado num cansaço novo, então as primeiras folgas imunizadas foram pra recarregar as baterias- que aliás parecem eternamente arriadas.

Mas este finde foi temporada de por o cagaço pandemico de molho e ver o solo Hamlet 16 x 8, de Rogério Bandeira, que estava em cartaz no Teatro Sérgio Cardoso. O artista faz paralelos entre o homem de teatro brasileiro Augusto Boal e sua própria trajetória. O teatrólogo brasileiro carioca que inspirou a produção escreveu a autobiografia Hamlet e o Filho do Padeiro, livro que guia o ator em incursões pelas “memórias imaginadas” dos dois homens de palco.

A incursão pelo universo cênico foi por uma boa causa: pesquiso Boal e trabalho com ele há uns aninhos em Santo André, que já usou o Teatro do Oprimido deste artista retratado no monólogo que conferi para envolver os moradores no orcamento participativo.

Em cena, Bandeira começa se estranhando com cenário, com o monólogo que tem pela frente e o relaciona com nossa incapacidade de diálogo político recente. Os “causos” envolvendo o começo do Teatro do Oprimido criado por Boal são tocantemente encenados por Bandeira — como o camponês que se comove com a peça pela reforna agrária, chama o elenco pra lutar com os trabalhadores rurais contra um latifundiário no Nordeste, mas percebe que o sangue que os artistas derrubarão por justiça fundiária é cênico, até porque as armas eram teatrais. E são estas lembranças que traçam paralelos entre as recordações do ator: a infância entre os sustos da repressão da ditadura, as perigosas e saudosas brincadeiras de menino e perdas em família — a maioria delas com muitas semelhanças culturais e políticas com a trajetória de Boal.

Este artista também encena a senhora corpulenta que entrou em cena numa dramaturgia simultânea feita por Boal e elenco, encenando a tradição e roubo de um marido que enganava a mulher por ela ser analfabeta. Os atores não acertaram o improviso de uma conversa série e reconciliação que a expectadora forte pedia, até que a mesma toma o lugar sa atriz e dá uma surra no atoe que fazia o marido traidor. Começava a nascer o Teatro Fórum de Boal, que já conta com praticantes em 90 países.

As memórias de Bandeira não deixam barato em termos dramatúrgicos: suas primeiras lições teatrais com um mestre cênico irado, o auto exílio mo Brasil mesmo e em família, os apertos da profissão de ator e mesmo a conexão com o livro no lançamento, fazendo leitura dramática.

Alguns destes episódios o ator retoma para dividir a saudade que sente de atuar em grupo, junto de seu “cardume cênico”. Pela intimidade com que a plateia se rende à costura de lembranças, bem provável que muitos expectadores sejam da área. Ao menos por uma noite fomos uma plateia sustentando a falta do palco e a fantasia de sermos peixe do mesmo bando.

P.S.: para não soar muito clube dos atores, meu companheiro, que não é do segmento cênico, sentiu que sempre vale ver um bom ator, mas pra aula teatral estava meio fora do contexto.

P.S.: segui me sentindo em casa com Bandeira recomendando voltar rápido porque já nos expusemos ao Covid e conhecendo o filho dele que sobe ao palco no fim da encenação.

--

--

Francine Machado De Mendo

Brincante,professora de artes na EJA escritora,"gateira",contadora de histórias,nadadora viajante,escritora, macumbeira,pesquisadora e batuqueira.