De arrebatamentos inesperados

Francine Machado De Mendo
4 min readJun 9, 2021

Tenho para mim que a relação com a cultura popular é meio como um chamado. Não por acaso atualmente nos relacionamos numa pegada espiritual. Sei que parece papo de amigo ayhuasqueiro mas é tão real que quando o chamado surge antes de estarmos abertos, quase que não ouvimos. Há dez ou 15 anos fui a convite de amigos numa festa popular no Morro do Querosene, região de cultura tradicional paulistana. Achei linda, fomos de chita, cantamos, dançamos, porém depois provavelmente por exaustão, de um certo ponto em diante esperei o fim arriada numa calçada (estes festejos são uma espécie de rave ao ar livre de tão duradouros…).

Quando já estava semi nova, soube da festa do divino em São Luiz do Paraitinga, levei meu companheiro comigo (mas ele é um desses não tão encantados com isso). Assistimos vários grupos cantarem, subir mastro, dançarem, fazer teatro de rua… Nos exaurimos: aceitamos ajuda de uma amiga que produz viagens em conta e passamos na pousada de uma amiga dela só para esticar as pernas. Apesar do cansaço devido ao bate e volta sem carro, nos encheu os olhos as casas coloridas, os estandartes e a invencionice desses mestres populares.

Para matar as saudades desde que não pudemos mais voltar ao interior paulista, segui ouvindo Bandeira do Divino de Ivan Lins e enchendo os olhos, emotiva. Partilhei com estudantes e professores parte das minhas pesquisas e encantamentos.

Numa das especializações que fiz, vi uma professora que admiro tocar a caixa do divino. Guardei esse maravilhamento no sótão da memória. Uns aninhos depois, no começo da pandemia, fui atrás de uma. Comprei uma de criança, que era para conseguir pegar três conduções e levar às escolas em que trabalho. Mas essa quarentena né? Está pior que parente entrão visitando sem aviso.

Comecei um estudo algo entre o terapêutico e o musical: pensava em me apresentar com ela nas narrações. Quando fiquei dura com todos congelamentos e cortes que os professores estão passando, coloquei esse projeto em suspenso, meio tristonha…

Algum tempo depois soube de uma oficina social das Caixeiras da Nascente. Aderi na esperança: “será que com uma mestra popular ensinando mais rústico toco com mais facilidade”? Não levou muito para a própria cultura popular me ensinar que ela é mais complexa do que compreendemos estudando mais e experienciando menos.

Percebi que aterrissamos da arte na cultura popular com “uma régua” que não se encaixa à manifestação popular: perguntava por repetições, tempo entre batidas, como saber quando começar, entrar ou sair, já que em meio à prática surgem toques muito incomuns. E a mestra só dizia: pode só tocar, pode cantar e tocar, pode só tocar e pode fazer baixinho (porque parte delas pratica no Meeting em seus apartamentos)… Porque se nos conectarmos ao divino tocando com o grupo, estaria tudo certo!

Os toques do divino só me confirmaram que sou meio como minha família: só fazemos o que queremos. Alguns toques a mestra marcava com frases do catolicismo popular e eu querendo alterá-las para algo macumbeiro ou budista… Demorou um tempo para eu confirmar que uma amiga artista tem razão quando enfatiza que tradição é pra seguir, não é pra renovar. Ela tem sua sabedoria.

Ainda me parece meio impossível tocar e cantar junto, pois a cabeça se divide mal entre ambos. Apesar de toda ralação, insisti quando as mestra e contramestra chamaram para tocarmos no penúltimo domingo de maio para o alvorada e o divino. Já tinha me tocado quando uma delas explicou para as que não seguem nenhuma tradição que a espiritualidade é uma porta aberta, podemos entrar ou não. E o grupo tinha devotas de diferentes fés, então também me senti acolhida no meu sincretismo atípico. Vejo na mestra na mesma generosidade do meu professor budista, quando faço uma enxorrada de perguntas e os dois nos pacificam “o que você puder, quando conseguir, como for possível, está ótimo”.

Na verdade foi bem mais que o imaginado pela cabeçuda aqui. Madruguei em meio a um fim de semana apertado em que estudava pedagogia griô, improvisei uma bandeira no meu computador, amarrei um elemento de cena na saia branca, deixei a janela aberta com o vidro encostado e comecei tocar com elas no escuro. Vi o dia nascer e lá pras tantas, senti o divino que elas tanto comentavam e dei uma de neta de família que participava de procissões: pedi que o divino viesse, sem racionalizar muito.

Eu que escrevo pego algumas das gravações ou letras e levo um tempo para entender quais eram as palavras que a tradição oral também adapta para caber na boca dos grupos tradicionais. Minha professora de canto me apresentou algumas cantigas das caixeiras maranhenses de terreiro, que iniciaram estas com as quais toco hoje e são do catolicismo popular. Acho que quando me arrepiei com a potência de todas nós se ouvindo, repetindo, buscando numa sincronia possível online que me caiu a ficha: o que pode ser mais político do que essas mulheres tocarem caixas de um som negro na frente de um altar em sua maior parte católico, masculino, branco…? Não por acaso a ladainha que cantam é parente da ladainha da capoeira…

Ainda não contei para elas, mas sinto que alcancei a graça da vacina devido à asma moderada há quinze dias pelo que senti tocando com elas, há duas semanas…

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Written by Francine Machado De Mendo

Brincante,professora de artes na EJA escritora,"gateira",contadora de histórias,nadadora viajante,escritora, macumbeira,pesquisadora e batuqueira.

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