Desde o seu tombo

No fim de semana fiz um bolo de prestígio sem leite que ficou muito forte pra pagar os ovos emprestados da vizinha com pedaços dele. Lembrei que me falaria “mas também só você cozinha com alpiste”. Nem sempre você experimentava, mas sempre tirava sarro. Como quando ofereci “café” de milho — ou cevada, já não lembro e você provocou:
- Hummm… Não sei, o que diz a Anvisa sobre essa bebida?
Suas histórias estão por toda parte, como que lembrando o quando podiam ter virado uma peça… Ao menos se transformaram em posts e mais posts. Mas hoje quero celebrar as histórias que me tocaram desde que você caiu — é, em meio à preocupação, choro, ansiedade, reza e angústia, vivi momentos tocantes que me atravessaram.
Durante os 15 dias em que ficou na UTI, os médicos sempre diziam como era difícil, que tentavam de tudo e como você era forte. O seu corpo, mantido com métodos arrojados de administração da pressão alta e diabetes — cigarro, pururuca, pinga e torresmo — lutava para viver. Acho que se há algo extraordinário que ganhamos para nos lembrar da conexão com a Liga da Justiça, o universo, a arte, o tempo e a vida foi nossa primeira casa: o corpo. Em alguns dias sua batalha para enfrentar as adversidades dos traumas (a queda e a cirurgia) me esquentaram o coração. Como quando fui à cardio, li a família que estava melhorzinho e ensaiei uma dancinha na frente do Parque do Trianon, na Paulista.
Na última visita em que te achei magro demais, sofrendo com a boca aberta e machucados ao redor dela, te falei:
- Se está sofrido, queremos que descanse. Qualquer coisa que queira, sinta, pense ou deseje é legítima: só fique bem. Estou escrevendo sobre nós e desejo que fique confortável. Só mais uma coisa: não farei mais concurso!
No dia seguinte você partiu. Confirmei mais uma vez que os internados, inconscientes, em coma, sedados ou entubados esperam que alguém dê licença pra que possam ir embora. Fiquei mexida de fazer parte disso e sinto que a vida seguiu seu curso contigo, assim como fez com os tios Arantes e José Augusto, além do avô Renério. É impetuosa a força da vida nessas horas: é feito a natureza, se move conforme precisa, não fica cheia de dedos como nós por aqui, em situações delicadas. E pensar que a mesma vida nos move a todos.
Na semana seguinte à sua passagem chegou a tia Tana do Paraná e a mãe voltou das tias para a casa de vocês. Elas têm se feito bem como nunca: mãe voltou a levantar, cozinhar, tirar lixo, receber visita, ver a família, reclamar que saí com roupa ressuscitada do fundo do baú, ir à psicóloga… Quando os tios passaram em casa para sua missa de 7o dia, ela justificou:
- Meu marido não gostaria de me ver na cama.
E eu que avaliava outras licenças para cuidar dela, também me vi em busca dessa melhora. Me surpreendeu como melhoramos no coletivo: um começa a sair da toca e quem está ao redor também vai para o sol.
Ainda antes de voltar ao trabalho, o Rafa, um amigo professor de Santo André que tantas vezes você nos deu carona me ligou, depois de um tempão de luto da mãe que o fez sumir do mapa. Choramos, conversamos, desabafamos, expressamos como nos gostamos e nos tocou ouvir nossas vozes de novo. Poético e melancólico que a gente se reaproxime quando fiquei à flor da pele, entendendo a tristeza insistente da perda dele.
Amanhã volto a trabalhar. Fico na expectativa de onde chorarei, me sentirei longe ou vou rir à toa lembrando suas tiradas. O espiritismo dizia que tinha um céu dos artistas. Será que tem dos boêmios? Espero que você ouça o samba que me apresentou e fez com que seja apaixonada pelo ritmo até hoje.