Desde que habitei meu corpo

Francine Machado De Mendo
3 min readJun 19, 2021

Perceber a potência deste corpo brincante tem me deixado em estado de maravilhamento. Já tinha esse corpo antes da quarentena, é verdade. Mas não tinha enraizado completamente nesta minha casa. Nesse vai e vem da ansiedade ao desânimo do isolamento, mapeei desde suas sutilezas — neste nado me apaziguo tanto que até batuco na prancha — aos sinais de alerta — como a gastrite me sacolejando quando o nervoso aperta.

Mas porque raios não me apaziguava em meu corpo antes da pandemônia? Um pouco por pensar demais, fazer muita coisa ao mesmos tempo e de tanto ter ideia, raramente estava onde meu corpo transitava. Tanto que caí em vão de metrô, bati carro, fui assaltada de formas bizarras, quase caí em bueiro, enfim, toda sorte de opções do cardápio “cabeça na lua”.

Na quarentena tivemos que dormir nessas incerteza e medo, que viraram companheiros de jornada. Numa tentativa de me conectar com o que o corpo expressava e também com minhas próprias raízes, voltei às danças brasileiras. No começo me batia pelo escritório e derrubava o que estava pelo caminho. Depois comecei tirar partido de não ter plateia para testemunhar minha descoordenação. Nesta altura do campeonato me maravilho porque a cada novidade, melhora ou desbloqueio que desbravo com o corpo, outras atitude, olhar e pensamento melhoram em cadeia e com menos sofrência do que através de percursos teóricos.

Mas porque as danças populares nacionais meeesmo…? É um chamado ancestral: sentir que caldo multicultural é o brasileiro. Além do mais, quando não tínhamos nem perspectiva de vacina à vista, experimentar danças maranhenses com a colega do Programa de Iniciação Artística, era de um certo modo viajar até a região do cacuriá de dona Teté, sem sair do lugar e muito menos me arriscar.

Na sequência vieram as aulas com Silvana, cujo carisma de sobra humanizou as aulas pelas lives da EDASP/ FTM. Enxergar e me encantar com as influências de todos os povos que nos formaram numa das danças me confirmou que nossa antropofagia cultural acontece desde sempre. Perceber que conseguia mais do que só a ciranda foi um espanto bem vindo. Sonhar em multiplicar futuramente com os estudantes foi um respiro na arte educação remota e improvisar uma apresentação conjunta digitalmente me remeteu à alegria das apresentações de dança no ensino médio. Me senti parte de um todo maior, mesmo nesta lonjura de rede social. E ao mesmo tempo, se não fosse ela, seria impossível danças três horas por semana, nesta cidade de distâncias muitas vezes intransponíveis.

Por fim, aterrisso nas Vivências Danças Populares — que só consigo “experienciar” porque a internet aproximou os mais distantes: quando antes ensaiaríamos com artistas cariocas? Entre os ritmos que já revisitamos, senti uma melhora na auto estima com o carimbó (mais intensa do que percebi na dança do ventre há muito tempo), comecei a sambar a partir do quadril e não dos pés e já não me acho tão desengonçada e agora estamos na fase do jongo, o pai do samba. Percebo diferenças com este ritmo negro do Vale do Paraíba, enxergo a herança cultural que resistiu nesta mistura de canto/ dança/ tradição oral/ resistência/ história e me vejo arriscando mais e me cobrando menos — uma conquista para a rainha da auto crítica aqui.

Tenho me percebido sonhando acordada em conhecer mais estas danças porque a corporeidade brasileira nos permite maior improviso, desbloqueios e jogo de cintura de forma mais fluida. Acho poético o corpo me sussurrar nossas bonitezas em momentos inesperados e me indigno da maior parte das pessoas não poder afinar esta escuta e prática corporais. Talvez por isso sonhe em levar para além do público artista. Mas por enquanto não forçarei amizade com planos futuros porque pela primeira vez, também em décadas, o corpo aliviou o peito da angústia. E embasbacada com essa graça alcançada, percebo o relaxamento que vem após o movimento e cochilo nele, sem culpa. Porque o corpo, esse fanfarrão, tem me feito encontrar saídas criativas para os desafios e me deixado — quem diria? — sem palavras!

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Francine Machado De Mendo

Brincante,professora de artes na EJA escritora,"gateira",contadora de histórias,nadadora viajante,escritora, macumbeira,pesquisadora e batuqueira.