Dias insone à flor da pele

Nas madrugas em que se dorme entrecortado é inevitável querer matar passarinhos e seu canto madrigal. Mas não pense que me rendo fácil à cabeça cantando, fazendo listas, editando mestrado… Com a casa escura das estrelas e lua na janela! Encaro todo o combo relaxamento: chá, mantra, respiração, escrita em fluxo de pensamento, tintura de valeriana, banho quente... E mesmo assim às vezes a insônia dá 7 a 1 em mim.
O dia seguinte à madrugada insone você se sente na escola do desenho do Snoopy: “blo blo blo blo blo”. Ficam inviáveis os pensamentos complexos, decisões extraordinárias e fechamento de qualquer paranauê decisivo. Quem dá perdido (ou é vencida) pela insônia há décadas já fica de vigília o dia seguinte inteiro: “não vou comprar essa briga porque não deve ser tão relevante… Só não dormi bem! (…) eu choraria com isso depois de sono o bastante pra renovar minha pele? Pouco provável! (…) Se rodar a baiana neste momento, perderei o réu primário? Praticarei o nobre silêncio”... Esse foco em não arruinar o dia após a noite de olhos bem abertos é tão exaustivo que o consolo é a garantia de sono restaurador na noite seguinte.
Um dia seguinte ao sono entrecortado não é uma boa ocasião para por em prática as recomendações da campanha do Setembro Amarelo. Mas como foi minha semana de por médicos em ordem, passei nos meus pais na brecha que deu e também por ser aniversário da Dona Lu. Terra arrasada familiar: os dois seguem esperando a morte, sem dar bola aos cuidados básicos. Mas não importa que isso desande minha própria saúde mental: sou filha única e a maioria dos que peço socorro ajudam com textos e mensagems pelas redes. Recomendo, discuto, parabenizo, me indigno, cobro, fico no pé dos velhos. O tanto possível porque também precisava correr à escola e a ideia era não me expor devido à insônia lembram? Missão fracassada com sucesso: chorei no celular, no ponto, no ônibus e na reunião pedagógica diurna inteira.
Falam na reunião que uma psicóloga virá para uma atividade com os alunos sobre Setembro Amarelo. Peço que ela também fale do suicído branco dos idosos porque especialista apontam ser comum e pouco discutido. A voluntária é muito nova para isso. Nestas horas penso Setembro Amarelo é meuzovário! Quando sua mãe emperra há sete anos numa deprê resistente, de altos e baixos, a maioria mal enviam sinal de fumaça. Nem precisa pesar tanto a relação quanto ela. Meu pai diabético e hipertenso, comendo pururuca e bebendo pinga, o povo próximo também jogou a toalha. Entendo, só desconfio que sozinha não dê conta. Lembro que meu primo irmão cruzará 600 km para me dar uma força nisso por aqui. Porém meus pais convencem como atores amadores que está tudo bem para ele, o orgulho da família. [suspiro]
“Planeta terra chamando”! Como neguei fazer a ata da reunião pelo choro embaçar os óculos e preocupada da escrita virar novela mexicana, ouço várias tentativas de ajuda… Que funcionam com idosos que colaboram. Os meus estão tentando se matar e eu tento evitar. Batalha inglória. Escuto para me aproximar do problema. Bem, é o que tenho feito e por isso chego ao trabalho chorosa e me mantenho assim durante todo o movimento burocrático do meio da semana. Tenho cortado um dobrado pra não entregar pra deus nessas horas.
Amigas da educação perguntam se um afastamento me ajudaria. Um dia depois das tentativas mal sucedidas de sustentar o choro dentro dos olhos, minha psicóloga avalia que se eles estivessem num quadro agudo, o afastamento poderia ajudar, mas com estes problemas crônicos não. Fora que nos momentos com os estudantes é sempre surpreendentemente terapêutico; um senhor voltou do afastamento médico e quando me viu repondeu “que estava tudo melhor agora”, quando entrei na sala e cumprimentei. Na outra classe, um jovem sempre longe e navegando não acreditou que estava bem, queria saber porque estava pra baixo e nas práticas de cultura popular quis repetir a música que gostou: “lá no mar tem areia”...
A noite seguinte ao dia mal dormido rende um apagão ininterrupto madruga afora, a ponto de não lembrar sonhos. O dia na sequência é uma falta abonada, pedida para ir num evento sobre Exu, que renovaria minha pesquisa griô na escola e minhas práticas teatrais na encruzilhada. Só consegui chorar no divã, curar meus males cantando com minha prô/ prima, fazer 4 páginas para o mestrado e repor natação. Vendo as bolhas da minha respiração afundada no cloro, lembrei da Maria Betânia “debaixo d’água tudo era mais bonito/ mais azul, mais colorido (…) mas tinha que respirar”. Senti que entre braçadas, recitação mental de mantras, mergulhos e cantigas internas para os orixás… é possível ser feliz embaixo d’água! Talvez porque lá respire fundo… Ou por não me cobrar de não conseguir nadar borboleta e me contentar com os outros nados. Pela memória da infância. Pela presença. Por me surpreender e nadar mais em dias que a vida me revira emocionalmente.
Na volta, vi católico fazendo sinal da cruz perto da igreja do bairro e contei ao amigo de trabalho que reza lá que nova fiz 1a comunhão, crisma e frequentei grupo de jovens. Ele se espantou e disse ainda que até casei de noiva fantasiada de sereia. Ele pede detalhes e nego “não lembro mais, foi noutra vida, nesta mesma existência”. Aqui caem fichas búdicas: já fui muitas Francines e me orgulho da morte das anteriores para a atual nascer. Não serei a dramática filha dos velhos teimosos que se prejudicam para sempre. Alívio do tamanho de um mergulho. Acho que já posso abraçar a cama e mereço nova noite de apagão restaurador.