Enquanto a Vacina Não Vem

Francine Machado De Mendo
5 min readJan 13, 2021

A quarentena está fazendo tanta hora extra que até eu e meu marido, com preferências de entretenimento tão díspares, já vimos tantas séries juntos que perdemos a conta. Tanto eu já me rendi a alguma ação, ficção científica e suspense dele, quanto meu cônjuge também tem encarado alguma comédia, drama e romance meus. Numa dessas conjunções fílmico quarentenadas — comédia dramática, a menina dos meus olhos! — um dos personagens encara uma maratona de trabalho braçal para não ficar com álcool na mão, já que ele luta para se manter sóbrio. Desde então tenho me perguntado: evito que pare o que em minhas mãos quando me rendo à compulsão por estudo e trabalho? Boa parte da minha vida achei que evitava cair na ansiedade e angústia, mas nos últimos tempos percebi o quanto ser reprimida sempre que era sensível nova me deixou nesse desespero de sustar quando cismo que sinto demais. Desde então tenho corrido menos dessas emoções perturbadoras. Às vezes a pandemia segura a onda compulsiva, mas às vezes nos joga nas emoções que parecem surgir das sombras, com as quais que raramente lidamos tranquilos.

No caso de nós, a maior parte da vida em hipomania, tranquilidade para mim é otimismo patológico sagitariano demais. Nunca ouviu falar? Permita-me fazer hora extra pedagógica em plenas férias: a hipomania se localiza ligeiramente abaixo da sem noção euforia e confortavelmente acima da letárgica depressão. Nós lidos pelos amigos como praticamente centenários, por já ter feito coisa demais. Que deixamos os cabelos da família brancos quando se perguntam porque não nos metemos em menos coisas. Essa gente que já se exauriu de cansaço e dormiu no corredor do apartamento da mãe, porque era mais perto e não tinha ninguém pra nos receber. Que já choramos de alegria e os conhecidos mais lógicos não puderam entender. Que demos piti no terceiro serviço público seguido que nos deixou na mão e precisávamos do que estava em falta. Essa gente intensa já rotulada por colegas como mala mesmo. Imaginei e ensaiei diferentes abordagens para falar disso, mas ressabiada depois da fama de doida que fala verdade, só em confinamento para se por na berlinda com menos pé atrás.

A pandemônia começou mais ou menos desafiante para nós, os meio hiperativos — porque já abusamos do gás e da saúde pra seguir irriquieta agora na meia idade. No começo, ficava nervosa ou irritada porque tudo que era saudade, ideia ou sugestão para apaziguar parecia já pensada para os naturalmente anti social. A migração de cursos e vivências que namorava para as videoconferências colaborou para dilatar o tempo em casa e me experimentar de diversas formas: cantando, pintando, tocando, cortando e colando, improvisando, jogando, narrando, dançando… E registrando o que pude numa releitura de livro de artista. Praticamente um álbum de prints e criações pandêmicas.

Mas… Lembra das compulsões que abri lá no começo? Passei meses fazendo tanto exercício online e caminhada nos jardins do conjunto em que moro que minha lombar já meio combalida gritou. Os encontros online foram se revelando limitados, ao menos para os arteiros como nós — essa gente que tem saudade de receber perdigoto do ator na primeira fila do teatro, como diz o produtor @rodrigoeloi80. Lá pro meio da pandemia, um dos profissionais da saúde que acompanha meus sobe e desce recomendou flexibilizar um pouco o isolamento. Já sonhava acordada em voltar à academia aquática do bairro, mas como meu juízo era maior que a saudade, consultei uma colega médica da família e o cloro realmente é inimigo do coronga. E pela primeira vez a gente engole água entre uma braçada e um pulo e fica feliz vem ni mim cloro! Tive saudade até das velhinhas tagarelas da piscina. Comecei disciplinada: indo e vindo nessa pequena academia.

Não demorou muito para o meu companheiro ser abduzido pelo trabalho e estudos e… Bem, eu sou dessas semi podre que se como a comida “chovem” dele passo mal. O comércio local não entrega compra barata e nem remédio contra ansiedade, angústia e insônia. Começou o pinga pinga periódico entre as lojinhas do bairro. Fui me dando essas licenças de abastecimento porque já que precisei corrigir atividade de aluno algumas vezes onde ensino… “Ah mas preciso dessa comida natureba-material de papelaria-remédio-café-bebida-visita aos pais-compra de ”… Outras partes desse corpinho já previamente abusado por mim mesma deram pau, perdi pessoas queridas e minha lista de auto cuidado e necessidades ampliou “tenho que ir ao médico-laboratório-PS especializado-velório-enterro”…

Quando uma amiga com fobia social teve Covid senti que se nem os cientistas acertavam divulgar todos riscos, quem éramos nós na fila do pão para saber se estávamos gerenciando os riscos das saídas por conta? Fora que a gente sempre na berlinda de se arriscar pode perder o pé numa empolgação súbita. Ainda resolvo fora minha vidinha que não se resume à compra virtual e telemedicina. Mas não adiciono paradas a mais para descompressão a cada questão a ser colocada em ordem pessoalmente. Para empolgados sem noção feito eu, voltar sem ter trazido alguma coisa que acabou em casa já é sinal de mais pé no chão. A nota de corte do que preciso fora é sair para apagar incêndio de saúde ou enxugar o gelo do consumo. Não amplio público nos fluxos que escuto nas quebradas vizinhas, nos churrascos animados que sinto cheiro, nos botecos que lotam as calçadas, nos comércios com filas e promoções e nas viagens que estranho quando vejo divulgações… Aliás essa é minha incompreensão quarentener profunda: os não negacionistas com saídas desnecessárias e arriscadas. Estranho ainda os mais isolados com discurso online de ódio para o público errado: trabalhadores, autônomos e demais precarizados com suas máscaras penduradas depois de expedientes inteiros protegidos e em trânsito. Só pelas chamadas noticiosas que acompanho preocupada demais para me aprofundar não tem como esquecer alguns dos principais vilões nesse pesadelo: desgoverno da extrema direita, neoliberalismo, ataques aos serviços públicos, pesquisadores e artistas e sucateamento da educação…

No meio desse caos fica menos constrangedor pensar alto: quem é maluco? Porque eu nessa produtividade contida a pulso já não aceito mais o rótulo malucão que recebi toda vida — porque os diferentes são lidos assim. Mas também ainda não encontrei resposta para a dúvida de quem apanha para conciliar uma mente inquieta ao isolamento: compulsivos por trabalho e estudo temem parar e se ver sozinhos com o que exatamente em suas mãos?

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Written by Francine Machado De Mendo

Brincante,professora de artes na EJA escritora,"gateira",contadora de histórias,nadadora viajante,escritora, macumbeira,pesquisadora e batuqueira.

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