Me aprumando pra catástrofe passar

Francine Machado De Mendo
5 min readMar 31, 2021

A quarentena tem feito coisas estranhas comigo. Esses dias, por exemplo, me arrumei para ver o mundo acabar. Ao menos essa é a impressão que tenho só batendo os olhos nas manchetes não solicitadas que caem no meu colo. Porque artista e sensível feito eu, fujo logo pela tangente e só quero saber de ficção, criação e qualquer outro ensaio imaginativo de um novo mundo. Um período do dia foi pro brejo entre auto cuidado, afazeres domésticos e atenção à gata. É, talvez eu não presencie o fim do mundo de quimono brilhante…

Um reencontro digital com colegas de trabalho pela frente e me rendo ao batom antecipadamente. Era bem desencanada antes da pandemônia, praticamente uma maloqueira, mas do isolamento em diante, sei não… Parece que me montar para catzo nenhum além de reunião previsível do trabalho ou videoconferência de estudos de sempre se tornou um simulacro de normalidade. Estranho também me incomodar tanto diante do meu cansaço e da passagem do tempo no meu rosto refletido no Meetings ou Zoom. Foi a crise sanitária detonando minha pele, que sempre me deu uns anos a menos. Soubemos duma amiga afastada. Não conseguimos avançar na pauta do encontro sem um boletim de como ela está: era o que temíamos. Deu uma piorada do Coronga, está com oxigênio alugado em casa, mas precisa pegar remédio peso pesado de UTI no hospital todo dia. Sigo o piloto automático corporativo e da agenda loka por algum tempo, mas assim que tive brecha, escrevi para ela. O filho está ajudando, mas se preocupa e é incômodo bagarai. Tento ajudar na medida do possível, porque o isolamento nos impede até da solidariedade básica. Como lidamos com a dor de quem a gente gosta?

Aqui para as bandas da minha impotência, as ações domésticas mais banais viraram rituais: termino qualquer coisa relacionada à cultura popular e já dedico o bem estar em benefício de todos os seres (a dedicação é prática budista, mas com os centros fechados e meu sincretismo brasileiro, venho fundindo tradições com sucesso). Dias depois de danças, cantos, pedidos e agradecimentos ao altar da Liga da Justiça, tenho notícia da amiga: está há dias em enfermaria, sem banho, atenção médica, esperando vaga porque o pulmão deu uma piorada e está com pneumonia. Depois de bastante tempo de interações dançantes com o altar, me ajoelho no ritualzinho para os membros da sagrada Liga da Justiça doméstica. A prostração também é prática búdica, mas até aí tudo bem, uma dakini e um buda garantem representatividade tibetana no altar. Choro, mas já não estranho e nem reprimo. Aparentemente até a sabedoria dos meus pedidos quarentenados têm melhorado.

Tapeio o tempo e a preocupação estudando e conferindo editais que perdi num calendário interno desgovernado no qual minha cabeça isolada confiou. Não me chicoteio, só percebo qual perfil de edital é viável para minhas limitações emocionais, físicas e de produtividade. É reconfortante se apaziguar conosco e perceber brechas para driblar a distração famigerada de sempre.

Minha família, contando com uma sensibilidade superfaturada pré quarentena, revela retardatariamente que o filho do meu tio morreu de Covid. Não me localizo na memória para além do cabelo dele e me sinto mal porque discuti com meu tio na penúltima eleição. É, devo admitir que guarde mágoas políticas. Mas uma coisa são minhas brigas com as pessoas e outra é a dor delas e o pouco que posso consolar. Troco mensagens com meu tio, que tem dormido muito ultimamente. Lembro dos netos dele e que brincavam com a enteada que perdi de vista há 14 anos talvez, desde que o pai dela conquistou a alcunha de embuste campeão de todos os tempos. Dou pelé nessa saudade dela que às vezes sobe do bueiro porque na última stalkeada que dei, não tive coragem de escrever. É, a pandemia evoca emoções old fashioned demodê. Pensando bem, acho que ressuscita uma linguagem retrô também.

Sou tirada do clima nostálgico por um boletim atualizado da amiga do trabalho. Transferência de hospital, tomografia à vista, inchaço e enjoo. Nos escrevemos rápido porque ou ela toma medicação e descansa ou fica mobilizada digitando. Respondo ao pedido de oração dela que até os ateus das escolas em que trabalhamos estão rezando e ela acha que só eu para fazer rir nessas horas. Me esquenta o coração de que a alegria talvez seja mesmo política. Câmbio, desligo, rezo, choro, me revolto e faço yoga. Percorro um looping emocional pior que montanha russa, mas nos últimos tempos fico ressabiada e desconfiada dele. Deságuo no pilates, mas toco o foda-se de engolir o choro, há décadas meu pai não me cobra mais isso, é minha sala, pandemia brasileira, motivos para lavar a bola suíça não faltam.

E por falar nele, veio com minha mãe trazer pão bem no aniversário dele. Claro que não precisamos do pão da padaria em frente ao lugar em que comecei fazer teatro quando era choven, mas também é impossível brigar com quem traz comida e só faz o que quer feito meus pais. Geralmente acho uma distância preventiva dois andares longe do carro do meu pai, mas já que ficava mais velho e não atenderam ligações, desci para cumprimentar. Meu pai parece gato que a gente faz cafuné e ele vai entortando atrás de mais carinho. É uma linguagem que devo estranhar sempre. Mas são meus velhos e na atual conjuntura, que milagre estarem de pé, mesmo “sassaricando” tanto à toa nessa crise sanitária.

São eles quem me dizem que o filho da minha 2a madrinha está no hospital aqui em frente, que é conhecido como referência da região para coronga, mas que centro médico dará conta dessa avalanche de contaminados? Me pergunto o que fiz pra merecer estar bem, depois de livraria-café-escola-trem-hospital-ônibus-velório-amigos-enterro-laboratório-farmácia pública-loja-papelaria-casa de construção… no último ano e pouco? Alguns eram necessários, mas outros foram ansiedade de hiperativa presa espanando mesmo. Como somos ou não sorteados no bingo sanitário?

Pirando na batatinha com isso caio num vídeo do cientista Átila Iamarino comparando a genética feminina com a das gatas, explicando as vantagens e que por conta do nosso XX somos inclusive mais resistentes ao coronga e… Nisso o celular pipoca e sabemos que nossa amiga irá para casa, pois os demais pacientes do 2o hospital em que estava estão numa situação pior, levará mais remédios e se cuidará com o oxigênio alugado. Maiores as chances do mal estar esperando vaga sentada melhorar.

Até que enfim algo bom por ser mulher!

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Francine Machado De Mendo
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Written by Francine Machado De Mendo

Brincante,professora de artes na EJA escritora,"gateira",contadora de histórias,nadadora viajante,escritora, macumbeira,pesquisadora e batuqueira.

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