Meu pai é uma tragicomédia

Há tempos este texto “dorme comigo”, mas esse batidão trabalho-mestrado-auto cuidado fez olhá-lo com distanciamento, na expectativa de que uma ideia o deixasse mais literatura de praia. Como esta semana ele veio aqui com “dona Lu” e todo seu olhar Aspenger para o mundo, não resisti a escrever neste domingo friento.
Mas vamos às histórias “comédia da vida privada” antes que seja acusada de fazer bullying com seu Benedonça… Já devo fazer teatro há uns 16 anos ao menos, descontando o tempo que a prisão trabalhista das assessorias de imprensa não me deu alforria pra ser criativa nas horas vagas. Não lembro se já na licenciatura cênica, ou logo depois, ele falou da vontade de conhecer a terapia coletiva “Amor Exigente”, que uma prima coordenava no interior. Eu e minha mãe quisemos aproveitar que outro louco manso da família se movimentava rumo ao divã e fomos nos encontros perto da casa deles, no ABC paulista. Não tínhamos muita noção que as pessoas se curavam em conjunto, mas lembro dumas histórias tipo vida loka:
- Meu filho roubou a gente, quase teve overdose, mas não se droga há X semanas. “Só por hoje”! — alguns familiares vinham do Narcóticos Anônimos e ainda terminavam assim, mas essa não era uma frase lá das rodas de codependentes de parentes em tratamento, cujos familiares já tinham feto muito estrago em casa…
- Minha sobrinha sumia, nós nos preocupávamos, até a resgatamos num bar em que nem sabíamos que ia, numa situação degradante, mas já não bebe há X meses!
- Vocês sabem que dependente não ama nada além do vicio né? Que ele adoece 7 familiares próximos e vocês têm que ser duros, negar os pedidos de recursos? — os facilitadores também eram “pé no peito”.
Enquanto isso, seu Benê, vulgo meu pai…
- Minha filha faz teatro — vergonha alheia minha e da minha mãe, espanto dos demais participantes — Não queria, não dá dinheiro, mas…
Presenciei outros modos do seu Benedonça atuar lá como um tragicômico senhor da melhor idade:
- Eu não vou em psicólogo ou psiquiatra. Vai que encontro alguém mais maluco que eu?
Acho que o toleraram alguns encontros devido ao seu potencial de provocar riso terapia nos parentes de viciados… Numa noite, o facilitador começou com a estratégia “o gato vai subir no telhado”:
- O senhor bebe?
- Só socialmente — detalhe: fiz busca e apreensão dele nos botecos de São João Clímaco, entre o Heliópolis e São Caetano, em parte das minhas infância e pré adolescência.
- Quanto é esse socialmente?
Silêncio constrangedor na terapia comunitária… No cafezinho que serviam depois, o facilitador comentou com ele:
- Tem certeza que o senhor quer continuar vindo? Porque as histórias são pesadas e sua família… Bom, vocês não tem um problema “de verdade”, só não concordam…
Quero provar como ele é comédia, mas não deixo de puxar seu Benê nessa linha irônica… Quando o jornalismo anda me adoecia, ele queria saber:
- Porque você faz teatro mesmo?
- É pra quando avisar no trabalho que faltarei ou atrasarei para fazer uma entrevista, mas me perguntarem porque e quiser dar perdido, responder chorando “não posso/ quero falar sobre isso”… Buá! — com uma voz cenicamente triste.
Seu Benedonça tem também atitudes cômicas: na minha 1a formatura bateu pé que não queria ir, mas na hora do baile saiu atrás de mim na valsa e dançou como se mal pudesse esperar aquele momento. Lembra que sou meio tragicômica feito ele? Se formou comigo nesta noite a Luriam e adivinhe se o “ai que saudade do meu ex” não estava lá? Não deixei meu pai ex sindicalista pedir autógrafo do Lula. Quando a esta sandice, só tenho a dizer que bom que amadurecemos e melhoramos como os vinhos.
Ainda na época do bacharel em comunicação, ficava revoltada porque as condições de estágio eram dignas de prisão trabalhista. Inspirada nele, que se meteu em greves e não conseguiu empregos depois, ainda na ditadura, desabafava da vontade de fundar um sindicato para os futuros jornalistas. Ele desanimava:
- Vocês são pior que puta. Sem ser profissão oficial não dá pra defender estagiário…
Ou quando já depois da Metodista, fizemos greve na Gazeta Mercantil PRA RECEBER e também ouvi do meu pai e fiquei sem argumentos:
- Quanto mais vocês estudam, mais estúpidos ficam pra negociar com o patrão… E se você fizesse concurso de bilheteira do metrô? — ouço isso há décadas porque ele trabalhou lá e ele ainda não se conformou de só ter talento pra passar perrengue (ou que sou claustrofóbica pra trabalhar trancafiada numa caixa).
Nem só em nesses assuntos fazemos cenas tragicômicas. Quando me preocupo com a saúde dele e falo para parar de fumar, me vem com essa:
- Só paro quando você não roer mais a unha!
- Como só mandou gene meia boca pra mim, sua irritação me faz morder unha… — respondia. Já comecei a por em prática a política “escolha suas brigas e limite suas piras”: hoje rio (amarelo ou não) e abri mão de muitos dos bate bocas que tínhamos.
É preciso dar um certo panorama profissional para a próxima memória fazer sentido: tenho mas lugares trabalhados do que anos de vida. Foram tantos os desabafos sobre a precarização do jornalismo (que chamávamos de picadeiro da informação porque “se jogasse a lona, virava circo”) que quando rolavam trabalhos com clima bom, ele definia:
- Tem clima que não vale o Pão de Açúcar. Fica onde não infernizam vocês. Já te falei: abandona firma boca de porco!
Voltando ao tema variedades, depois da minha primeira separação, os namorados que arrumei na meditação e na yoga fracassaram redondamente com sucesso e ele recomendou:
- Agora vai procurar um namorado no futebol!
No quesito ajudar quem amamos em situações do tipo roubada, ele tem opiniões meio “voadora”:
- Tem que começar a cobrar essas coisas. Por amor a gente só faz amor e olhe lá!
E porque tanto “vale a pena ler de novo”? Sim, porque provavelmente noutros blogs meus já fiz esse balanço… Porque seu Benê veio estes dias aqui com minha mãe e ficou um tempão falando que leu um artigo na Fapesp sobre uma formiga específica, achou os formigueiros na Goiás e à noite segue o caminho das organizadíssimas formigas desviando da rua e de pedestres… Lembrei dele fotografando as formigas no zoológico e ficando refletido na revelação dessas imagens…
Ou porque odeio o dia dos pais e tento pacificar os deslizes preconceituosos dele com as pérolas tragicômicas fora dessa época? Talvez porque apesar dos genes avariados que me mandou, acabei com o humor dele, o que não é uma herança de todo ruim. Outro palpite é por ter visto outro filme do Paulo Gustavo, que sempre me fez imaginar que podia fazer essa peça, mas de calça, refazendo cálculos, lendo revista de aviação e vendo Globo Rural. Feito seu Benedonça. No fim das contas ele que me deu minha porção cômica, com a qual atuei algumas vezes e até soube que ele cochilou na minha apresentação de Miseráveis no Teatro Ruth Escobar:
- Só dava para ouvir você, o resto falava baixo.
Quem sabe para lembrar que meu pai podia ser esses tiozinhos que ouvimos na condução ou na fila do mercado e são mais desavisados do que qualquer outra coisa. E que apesar de ser também faca no dente de tão pavio curto, foi ele que escreveu poesias para dona Lu no namoro e quem chorou conferindo minha apresentação no programa Quintal da Cultura há uns aninhos.
No fim das contas somos só uma metaformose ambulante clichê. Uma contradição sem fronteiras. O que seria um caldo e tanto para um personagem. Pena que um mestrado me abduziu.