Nadando Rumo ao Fim do Mundo

Francine Machado De Mendo
4 min readJun 2, 2021

Na avalanche de notícias “corta pulsos” da pandemônia foi assim que me senti no uso possível da piscina: toureando meus fantasmas, enquanto não despencávamos na ribanceira final do Brasil distópico.

[em tempo: substituí a academia aquática por aulas online no primeiro fechamento dos comércios e serviços. Graças à hiperatividade, provoquei estragos na lombar e descobri que a aula não tem 45 minutos à toa. Foi mal pela ignorância, educadores físicos!]

Senti que uma mediação entre minha necessidade de desacelerar e meu jeito afobado era bem vinda. Em meio a algumas rezas minhas para a Liga da Justiça e muito cuidado dos professores e faxineira, voltei numa das reaberturas para as aulas. Descobri um modo lúdico de tourear meu demônio da angústia sentado no peito com o nado cachorrinho. Fico numa alegria infantil ao descobrir algo novo entre raia e borda, porque entre idas e vindas lá se vão décadas engolindo e desviando d’água.

Ou não. Porque me parece uma espécie de meditação quando na ansiedade nado costas só batendo perna. É tão meditativo que até arrefece a saudade do centro budista. E tem que ser uma espécie de meditação ativa mesmo: é esse centramento funcional, ou se afogar.

[No outro fechamento de quase tudo — não dá pra chamar de lockdown com bomboniére aberta né?- já apreciei as aulas gravadas com moderação e as costas tiveram paz. Mas esses hiatos combinados a só sair em caso de quase morte me deixaram com a vitamina D zerada. Era um desânimo que estranhava, já que sem tristeza não tinha ideia do que se tratava. Fiz reposição, mas as andanças para as aulas garantem um abastecimento mais certeiro dessa vitamina, sem a qual não dava conta de trabalhar, estudar ou cuidar de casa. E branquelas traumatizadas com insolação nas férias da infância correm do sol]

Para quem se cobra muito ou se traumatizou nas rasteiras da vida, dá um gostinho perceber minha autonomia para as braçadas. Os professores pedem uma quantidade ou tempo de chegadas e ficam tranquilos. Nessa de centrar na prática, consegui pouco tempo de apneia, olhei mais de perto meu cagaço do mergulho (meu inconsciente cisma que tem um mundo em cima de mim e não dará tempo de voltar… Sempre dá. É raso. E sim, sou dramática, tenho até DRT de atriz pra comprovar).

A piscina é um dos poucos lugares em que me aquieto — antigamente no Sesc, às vezes perdia a paciência com os tagarelas. Já na temporada quarentenada sentindo falta das braçadas, nos isolamentos mais hardcore, tive saudade das senhorinhas faladeiras da academia. Elas aliás estão tão extraordinárias quanto a 3a idade do Sesc: mascaradas nos corredores e vestiário. Só ponho aula em dia em horário de desocupado ou nos momentos de frequência da melhor idade precavida. Malabarismos que aprendi na quarentena e trabalhando no contra turno.

[Sim, não há protocolo que dê conta do vírus. Mas em algum momento fiz uma escolha de Sofia de que maluquice terapêutica eu manteria. Me ajudou a encarar o medo e caminhar com ele também. Porque conheço gente que precisará de mediação terapêutica para socializar de novo no futuro. Tomara que não, mas é o que sinalizam]

Suo minha banda hiperativa entre vários nados crawl : volto relaxada a ponto de contemplar a vida e o melhor: sem culpa por não produzir depois de deixar meu lixo mental na piscina - como diria o escritor e líder indígena Ailton Krenak. Sem uma “releitura urbana de um banho de rio”, esqueço que a vida não é útil parente.

[Essa minha prática em meio ao caos sanitário não pode ser uma receita para quem quer que seja. Só pude resgatar a cura que a água me proporciona porque a maioria dos trabalhos artísticos paralelos à educação estão em suspenso. Mas me conta leitor: como tem se apartado da deprê do coronga?]

É sempre um maravilhamento descobrir novidades entre as técnicas que me apresentaram na infância — quando me curei do bode da educação física escolar competitiva. Tenho experimentado impulso e deslizamento para não ficar tão ofegante — essa rotina mantém em contenção a asma nesta epidemia. E de olho na inclusão com as crianças na “piscininha” ao lado, imagino que parte das minhas piras passaram desapercebidas na época dos dentes de leite pela travessia terapêutica que a natação me deu.

[toda essa volta para comemorar que não, não nadei até o desfiladeiro final da existência: tomei a vacina há dez dias e já até pulo a natação quando preciso sem auto cobrança. O dia seguinte por exemplo, não teve braço disponível para cruzar sobre minha cabeça. Não é preciso apressar o curso até a borda da vida… Vendo amigo novos desesperados para se vacinarem publicando suas primeiras doses e comemorando, sinto crepitar uma centelha interna de esperança. E desta vez, não foi graças ao cloro arrebentando a pele e cabelo periodicamente. Nem tudo pode ser bom voltando ao esporte da infância…]

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Francine Machado De Mendo

Brincante,professora de artes na EJA escritora,"gateira",contadora de histórias,nadadora viajante,escritora, macumbeira,pesquisadora e batuqueira.