No meio da quebrada, um rio

Francine Machado De Mendo
5 min readJan 22, 2023

Neste finde finalmente conheci o Museu das Culturas indigenas. Na verdade, foi um sábado de encontros: conheci a doutora e ativista Marcia Mura e a educadora griô e mestre Lia Aleixo (todas amigas da Pedagogia Griô). Alegrias que não imaginariamos que a pandemia renderia: conhecer pessoalmente parte das nossas inspirações, encontradas em formações online.

Cantamos, dançamos, vimos a retomada das contruções indigenas tradicionais, costumes, histórias, grafismos e pesquisas da professora e escritora Mura, o filho e amiga dela, um pouco mão na massa e outra parte em videos, áudio e músicas. O doutorado dela levantou boa parte das tradições dos Mura, dos que vivem próximo ao rio Madeira, lago Maravilhas, entre outros territórios da zona norte do Brasil e explora a ideia de tecer as palavras. Só a poética já vale conhecer…

Toda esta contextualização indigena é extraordinária: tenho ido de encontro a estes povos, sempre que possivel e a causa sempre me toca — especialmente em tempos de etnocidio dos Yanomami (já trabalhei inclusive imagens deles em sala de aula). Mas o momento que mais mexeu comigo foi nossa apresentação: Mura começou não só falando dela, mas de seu rio de referência. É surpreendente quando o modo de viver deles (pertencemos à terra não ela a nós) nos atravessa de forma acolhedora. Pensei em perguntar se podia falar de um ex rio, mas lembrei do olhar de Ailton Krenak do rio Doce contaminado pela mineração e falei do Ribeirão dos Meninos — na divisa entre São Paulo e São Caetano.

Não fui a única a resgatar um rio de esgoto: a primeira da roda falou do Tietê e do sonho de vê-lo “sair do coma”. Quando chegou minha vez, quase no meio do circulo, já estava tomada pela nostalgia. Gozado que entre os que vivem em regiões mais preservadas a memória é de entrar, brincar ou por os pés no rio. A poluição da “civilização” impediu os “caipiras do asfalto” de um afeto mais interativo com nossos rios marrons.

Daqui de onde miro as margens do Ribeirão dos Meninos resgato memórias da minha época “chovem”, de quando a chuva castigava e acompanhávamos carros ou pessoas arrastadas em São Caetano, pelo implacável rio de infância. Lembro de perguntar:

  • Gente vamos ligar para os Bombeiros? — mas “TV em tempo real” de pobre é hipnotizante.

Lembro mais das margens do Ribeirão dos Meninos e da época em que tinham cavalos à beira dele. Me perguntava de onde vinham, de quem eram e onde eram “guardados” aqueles cavalos urbanos (acho que faria um Globo Repórter sobre eles). Mas isto foi antes do Parque Shopping São Caetano e os prédios de luxo do bairro Cerâmica tomarem o lado de lá do rio. Lembro de ter dúvida se gostava do horizonte verticalizando — ainda sinto falta dos equinos.

Falei que nas grandes cidades, a roça é a periferia e nossas lembranças de benzedeira, brincadeiras de rua, memórias de cair no barro da enchente, tempo desacelerado dos moradores, comerciante das ervas medicinais, futebol de várzea e apreensão quando chovia e estávamos na “cidade que peida morangos” (a que arrota seu iDH de primeiro mundo). Somos uma cidade que enterrou seus rios, como retrata esta intervenção teatral do grupo Estopô Balaio. E as fofocas sempre correram rápido feito o Ribeirão em dia de enchente: como quando minhas prima e mãe foram retiradas do carro por vizinhos que perceberam a água subir rápido demais algumas ruas acima. Foi um espanto e tanto descobrir que o seguro não cobre interpéries. A chuva pesada provoca sensações contraditórias: tem a preocupação com os que já perderam tudo, mas também uma comprovação da força das águas, ainda que barrentas, arrebentando as obras que as enterraram.

Até hoje quando estou a caminho do trabalho meio preocupada — o ponto também é na beira do rio e longe — quando passo a Ponte da Amizade (quem vê pensa: a “cidade caguei no biquini” nos odeia) sou temporariamente chamada ao presente com o som do Ribeirão. Ele corre, apesar de muitos do entorno jogarem até sofá nele. E seu som é infinitamente melhor do que o dos carros, mas já joguei papeis de memórias queimados, direto de um tacho de ferro: confesso! Ele ficou temporariamente colorido dos papeis e assoprar esta prova de bruxaria da janela do prédio faz as cinzas voltarem para casa.

Levamos um tempão cismados que o rio deixava a avenida Marginal fedendo, mas isso é uma descortesia da fábrica Braido (e pra eles não dou ibope). Cansamos de ver os maconheiros das vizinhas Ponte Preta e da Vila do Sapo se divertirem nas margem do Ribeirão. Minha prô de dança do CEU Meninos contou que quando vinham alunas das quebradas vizinhas ela tinha companhia para voltar pela “goiabeira”, serpenteando a margem, mas que sozinha era perigoso. Achei curioso o nome que deram ao atalho na beira do rio (que nunca usei) e tirei sarro que bom que o Jesus evangélico bolsonarista do pé da fruta nunca foi encontrado…

Já tivemos até bang bang na beira do rio: acompanhamos a policia correndo atrás dum motoqueiro que caiu na margem e abandonou a moto para trás. Às vezes carrinheiros deixam suas carroças artesanais ali e não entendo pq geralmente é o ganha pão deles. Fico feliz quando a vida e o tempo vencem tudo que é atirado no Ribeirão e ele deixa nascer uma resistência florida pelas margens.

Os apartamentos mais de frente com o rio (porque ele faz curvas) já sofreram com o Ribeirão subindo casa adentro há muito tempo, em chuvas violentas. Já não saimos de casa porque o rio tomou as ruas internas do condominio. No dia seguinte, fui para o trabalho com sensação de fim de mundo, com as ruas vazias, depois da chuva e o rio avançarem para lá das margens e quase 24hs depois ainda se tentava recuperar o que a enchente destruiu. Daqui de onde espio o rio penso que ele já foi limpo — afinal meu pai lembra de quando trabalhava na Cerâmica e recebia o salário em envelopes, com o “RH chegando na charrete”. Mas nunca aproveitamos. De onde espio o Ribeirão torço por um milagre dele ser limpo. Um dia — como no filme.

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Francine Machado De Mendo
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Written by Francine Machado De Mendo

Brincante,professora de artes na EJA escritora,"gateira",contadora de histórias,nadadora viajante,escritora, macumbeira,pesquisadora e batuqueira.

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