Nós, que conversamos com estranhos

O telemarketing de uma instituição de caridade me acordou esses dias. Mas é uma fundação grande, que também tem uma emissora deu TV na qual já trabalhei num passado remoto como jornalêra, então pela memória afetiva e falta de desabafos com estranhos pelas ruas em quarentena, no último pedido de doações conversei horrores com o telemarketing ativo deles. Devido a algum sono ainda reminiscente, respondi animada à ligação. Só que dessa vez era gravação, então levou umas duas tentativas de entabular diálogo pra me ligar que além de muito bem gravada, era também editada por alguém que proseia bastante ao telefone. Fiquei ali no escritório um tempinho com cara de ué até voltar para cama.
Quando acordo para beber água ou atendo ao telefone achando que aconteceu algo com meus pais por exemplo, minha cabeça 220 voltz nunca mais me deixa descansar. Às vezes volto aos lençóis com músicas chiclete repetindo um único trecho internamente ou numa busca nonsense de sentido da vida. Noutras tenho inveja branda do sono profundo do meu companheiro. Desta vez porém, lembrei da — vamos chamá-la aqui de Joana — dessa instituição com quem tagarelei da última vez e fiz também alguma doação — já não lembro quanto porque andei generosa nesse isolamento e os valores se misturam na memória nesta altura do campeonato.
Há 30 dias Joana comentou algo do colégio da filha. E eu como “louca mansa pedagógica” que sou, já emendei no rosário educativo:
- Você tem um minuto para a palavra da educação remota?
Ela não tinha, mas como também trazia um desabafo entalado, fez lá algum disfarce que avançamos da doação para uma troca de “pendengas pandêmicas”. De minha parte, minha mesma opressão burocrática e exclusão social dos estudantes: cobrança de documentos o bastante para frear nosso ímpeto ideológico, falta de condições técnicas para os estudantes trocarem conosco e facilitar os estudos dos mesmos, rigidez na produção e envio de atividades para as turmas que prejudica criatividade na arte educação, pouca ou nenhuma autonomia de estudos dos aprendizes, preocupação com violência, desemprego, problemas de saúde e familiares dos alunos que nos afetam… Enfim é tanta solidão do professor que já fiz os podcasts Descansa Francine e Franzoca Brandão sobre isso. Sei que nos ouvindo lá para as tantas percebemos que relativizar isso é trabalho íntimo mesmo. Porque depois de acumular mais trabalhos que anos de vida, já sei que mudanças profissionais só trocam seis por meia dúzia, pra ser educadinha com o leitor.
Bom, quanto às tretas da Joana, digamos que eram mais populares. Não tinha com quem deixar as crianças na pandemia, então era sempre uma ginástica com isso até chegar ao trabalho. Pensei que isso devia começar cedo e cansá-la, mas estava simpática ao fone. Depois tinha o ex que não queria pagar pensão e como muitos, reclamava que ela que se sustentava com isso. Discutimos quem é que arca com seus gastos só com pensão alimentar? Vários ninguéns — como diria uma amiga — mas concordamos que muito cara ainda fica nessa conversinha mole e dá perdido na pensão. Comentei que estudando dramaturgia e criação literária as professoras e turmas chegaram à conclusão de que o Brasil é um país sem pai, depois de diferentes debates e pesquisas em conjunto — tanto por ser uma nação de pais como o dos filhos de Joana, quanto por não prover o básico aos cidadãos. Sempre conhecemos doentes sem atendimento médico, mães sem vaga em creche, pessoas em tratamento cujos remédios estão sempre em falta quando tentam trazê-los para casa… Recordei ainda de um documentário que li sobre a produção dele, a respeito dos milhões sem reconhecimento dos pais, nas suas certidões de nascimento e na vida. Isso rende discussões psicanalíticas, mas relacionando ao momento atual, também deve colaborar para tantos desavisados votando em alguém que se vendeu como pai — e o desgoverno prova que foi mais um deixando os vulneráveis no vácuo, de novo e de novo…
Depois desse ensaio de discussão político-social, tanto eu quanto ela falamos de amenidades: comentei que trabalhei na emissora deles, ela sobre o que gostava de fazer nas horas vagas… Sei que só depois de muita conversa descobri que ela também tinha meta de pouco tempo em ligações pra levantar doações. Mas sabe-se lá, talvez ambas precisássemos duma conversa nesses tempos de emergência sanitárias e demos nossos pulos pra essa troca dilatada e pessoal. Desejamos as melhores festas, ano melhor e como não podia deixar de ser, saúde, muita saúde. Lembro que mês passado meu marido perguntou quem era pela demora, achou que uma amiga tinha telefonado. Sabem de nada esses inocentes introvertidos…
Aterrissando no momento atual devido à gastrite, mas ainda insone na cama e cedo para desistir dela, me perguntei se o pedido de doação com gravação indicava corte das telemarketings tagarelas. Desejei que não e que estivesse tudo bem com Joana. Estas inesperadas aproximações com estranhos…
Quando não estamos em pandemia e me sinto fervendo internamente, desabafo com guardinha, porteiro, vizinha não muito próxima, cobrador, vizinho de banco no ônibus, Uber, povo em fila… Nestes tempos de administração de riscos imunológicos tenho soado menos louca mansa que de costume pela falta desse hábito. É bizarro que o medo do coronga nos deixe com saudade até do que não repetimos há tempos: tipo bater texto teatral sozinha no ônibus, perguntarem se sou louca ou atriz, eu questionar porque e o curioso passageiro ter reparado que passava o texto da peça na condução, dialogando com personagem imaginário e nem me toquei. Mas isso é assunto pra outra crônica: a falta que temos sentido de situações surreais.