O fim do fim do mundo
Um estudante me mandou resposta da lição sobre bordel. Perdi a noção de tempo falando sozinha e tentando puxar pela memória porque não lembrava de qualquer atividade de puteiro. Do outro lado da casa, meu companheiro decifra o enigma e corta meus devaneios pedagógico-duvidosos: mandei para as turmas um vídeo e perguntas sobre um cordel a respeito do corona.

Esse vírus invisível que torna nossos minutos preciosos e assustadores. Até para ir à farmácia. Por mim ficaria os próximos anos de risco previstos pelo biólogo Átila Iamarino só no auto cuidado temperados pelos estudos, arte, meditação e entretenimento domésticos. Mas depois de três meses presa e políticas zero de contenção à pandemia, a vida urge. E eis que me vejo calculando economias e riscos envolvidos na busca aos remédios no serviço público. Economia de uma noite de trabalho em três caixas alopáticas. E lá vamos nós para farmácia de alto custo, rezando, usando máscara, ouvindo música para dar perdido no medo e de gorro. Como não fazia há muito tempo, calculei todas variáveis envolvidas. Liguei antes dos meus comprimidos acabarem para ver se tinham o que precisava e se aceitariam receita e laudo mais antigos porque... Quem está conseguindo ver médico hoje? Juraram que sim. Fui de Uber em meio ao cagaço matinal. Esse serviço precisava do isolamento: as filhas diminuíram incrivelmente, fui sem agendamento pelo aplicativo, me atenderam rápido, não havia doentes saindo pelo ladrão e nenhum camelô na porta vendendo comida. Com a calculadora na soleira voltei de ônibus ou teria prejuízo com tanta viagem de aplicativo. Me senti feito criança felizona no busão, curtindo a viagem, achando o Glicério, Cambuci e Vila Monumento lindas de viver em São Paulo. Aliás a condução pública também ficou com quantidade administrável de passageiro.
Cheguei com meu companheiro fulo porque a operadora cortou o telefone e a internet. Ligamos no atendimento, mas não saíamos da gravação e as opções programadas não nos ajudariam. Tentamos o site, pedia reconfiguração de senha, ela chegava no SMS, mas a página não aceitava. O atendimento pelo zap era tão automatizado que só funcionava nas opções que disponibilizavam — porém nenhuma nos contemplava. No meu celular o aplicativo travava e não abria. Até que meu marido conseguiu pelo celular dele explicar a questão ao atendimento da operadora via aplicativo. Previsão de voltar em 12 horas. Como ainda tinha reunião à tarde com o pessoal da escola, agilizei o almoço, avisei que tentaria conectar nos meus pais, mas não moram grudados de casa. E lá fui eu.
Na vista também não pude evitar o cagaço e me mantive de máscara. O laptop dos meus pais não funcionava. Tentamos o wifi, mas eles são tão analógicos que só lembravam da rede ter o nome da operadora. E o prédio tinha outras redes homônimas. Gastei um pedação da tarde tentando a senha em redes e mais redes de mesmo nome pelo bairro. Fui avisando minhas encrencas técnicas à escola. Por fim, tentei o Skype pelo celular e só passei mais raiva. Pra completar, minha família foi preconceituosa, briguei, voltei chorando e avisando aos colegas de trabalho que não conseguiria entrar reunião.
Voltando desgostosa e exausta, uma aluna me liga, reclama da saudade, que é horrível estudar sem os professores, que conosco é simples, que fazemos falta e não entende nada sozinha com a apostila. Me sinto mais freiriana que nunca e disfarço uma lagriminha. Será que a TPM está à espreita?
Depois desses enroscos, quero ficar no sofá entre streaming de séries e brigadeiro. Mas uma amiga pede para encontrá-la porque quer me pagar, porém o aplicativo do banco dela não transferiu e não pode ir ao banco durante o expediente bancário mais curto. Confiro meu extrato no celular para decidir, me paramento toda para dar pelé no cagaço porque estou negativa, seguro na mão de Buda e vou. Faço egípcia com relação ao medo. Levo um tempinho, mas a encontro presenteando com doces juninos ganhos do trabalho do marido. Ela fica emocionada como não ficaríamos fora da quarentena. Nos falamos rápido o bastante para nos prevenir, mas o mínimo para matar saudade à distância. Tenho proposto e prometido café para torcida do Flamengo no fim do fim do mundo. Volto aproveitando toda fast food do caminho que não comia há três meses: quase gozo com milk shake de capuccino e me acabo num pacote de batata frita suspeita de pipoqueiro. Não é figura de linguagem: volto com enjoo.
Me sinto feito a Fernanda Montenegro no filme Central do Brasil: tenho saudade de tudo. Em casa, os dias são precaução à tristeza. Faço exercícios pré gravados. Machuco minha lombar. Estudo para esquecer. Crio para me abastecer. Perco o pé das práticas que meus mestres de artes pediram. Medito pros macaquinhos no sótão da minha mente se apaziguarem. E conforme o circo da família ou do trabalho pegam fogo, me rendo à série ou filme de entretenimento pra aliviar as piras. Como será quando o fim do fim do mundo chegar?