Padroeira Ruth Escobar dos Atores Esquecidos

Há alguns meses nós meio artistas, meio educadores (é onde vamos parar com o descaso à arte nacional) ouvimos um burburinho de que o Teatro Ruth Escobar, a incubadora em que se formaram gerações de artistas nas mostras da Faculdade Paulista de Artes (FPA)e palco de resistência cênica à violência na ditadura, corria o risco de virar igreja. Na época não escrevi nada porque com a avalanche de barbaridades do desgoverno, a gente se indigna, mas não se espanta mais. E o texto acabou passando também porque estávamos enlouquecidos coma a educação remota para estudantes sem autonomia e com parte dos envolvidos ainda apanhando da tecnologia. Por estar nesse movimento criativo mais introspectivo e atualizando o blog, resgatei a ideia do post.
Antes de puxar o fio narrativo dos meus laços afetivos e o que não nos ensinaram historicamente, dei uma pesquisada para ver a situação da dívida e interessados no espaço. Em outubro fizeram matérias sobre o endividamento e possível venda do espaço, mas no fim do mesmo mês a venda para o interessado neopentecostal foi negada. Algumas notas davam conta que o Teatro tinha sido contemplado em editais da Aldir Blanc e para espaços culturais de São Paulo, o que acenou como luzes no fim do túnel. Uma reportagem mais recente dá conta de que as verbas não foram pagas, o que fez com que as dívidas aumentassem, portanto a perda do Ruth ainda se avizinha no horizonte, já que quando os fomentos forem pagos, a nem todas dividas poderão ser honradas, de acordo com a administradora Analy Alvarez.

Para quem não é das artes e nenhum entusiasta do teatro, mas ainda se preocupa com a marcha a ré política que estamos vivendo, em 1968, o Comando de Caça aos Comunistas (o equivalente a uma organização de bolsominions almofadinhas paralela à polícia que batia, quebrava e reprendia militantes, artistas e qualquer denunciado por desafetos que se passasse por esquerdista na ditadura militar) bateu nos atores da peça Roda Viva, encenada pelo grupo Oficina de Zé Celso, além de vandalizar cenários, figurinos e o próprio Ruth Escobar. Resgato essa história meio embotada porque mesmo vindo de licenciatura cênica, eu e a amiga slammer e formadora Monique Martins descobrimos na pós de Teatro do Oprimido que não acessamos essa parte obscura da história brasileira do teatro contemporâneo. Só que fizemos dois anos de mostras teatrais da FPA lá! Como nossa história é apagada até mesmo onde devíamos marcá-la a ferro e fogo, resgato esta memória sangrenta porque quando não conhecemos nossa história, tendemos a repetir nossos erros (ou avaliaríamos de forma mais sensata nossos votos e líderes religiosos). Enfim, essa é uma prosa para aulas e mais aulas, botecos e mais botecos. Deixemos isso para a rave de encontros etílicos pós quarentena.
Agora abro parênteses para minhas memórias afetivas com o Ruth; onde encenamos texto meu sobre a era de ouro do rádio; me vi enxergando minha cena de fora e feliz quando meu diretor riu do trecho do monólogo Professora Margarida que encenei; travei na personagem sexy; nos divertimos na comédia; nos sentimos os revoltosos históricos cantando versão da Internacional; interagi ironicamente com o público; fizemos um barraco convincente, mas emputecia a a cada apresentação porque nunca foi briga coreografada e ficava com dor; tive dó da plateia mirim chorar na morte de Romeu e Julieta, nos emocionamos ao cantar uma versão de Milton Nascimento para Hello Goodbye… O palco traz tanto de nós! É mesmo uma das minhas casa espirituais: tanto que uma vez cheguei mais cedo para ensaiar, encontrei um colega músico que fazia nossa trilha e ficamos deitamos no palco sentindo as cortinas, luzes e sons apaziguarem nosso stress da correria da rua. Não é à toa que ainda suspiro de saudade da ribalta.
Talvez soe que minha turma da licenciatura de 2009 a 2011 só viveu flores no chão do teatro. Mas teve muita ciumeira de atriz disputando personagem, dificuldade porque os palcos tem um quê espiritual meio Dionisíaco e sempre terminamos com personagem que trabalham indiretamente nossas travas, trauma dos professores meio sargentos, furo de colega de cenas, peça que só nós nos divertimos e diretor mais preocupado com o visual do que com nossa atuação… As coxias são meio que o espelho das paixões humanas: a gente se arma dum escudo disfarçado de figurino, pisa num reino mágico de cenário e ficamos todos meio inflamados.

Quando fui a prostituta Fleur, numa noite veio a família toda me ver. Eu e outras colegas dessas cenas abraçávamos, beijávamos, sentávamos no colo do público e o provocávamos. Nessa noite de plateia familiar comecei brincar com meu primo, mas acabei continuando noutra fileira. Descobri que só era despachada com desconhecidos. Meus parentes levaram flores, fomos jantar juntos e não era nenhuma peça meio Broadway que minhas tias gostam. Meu primo faz mais peças que caem no gosto delas. A gente vive se estranhando, mas percebi que eles me amavam. Nesta peça do Victor Hugo arrecadamos o maior chapéu de todos os tempos — a plateia doava em nossos decotes e teve noite que precisamos reforçar que não faríamos ponto e as prostitutas ficaram lá nos bastidores ao fim do meio musical meio drama. Depois dum semestre com dificuldade nessa criação, o teatro me ensinou que podemos demorar, precisar insistir mais, porém conseguir o que queremos tem mais de persistência do que de facilidade; aprendi a olhar minhas dificuldades dum modo mais lúdico, a abraçar meus bloqueios, colocá-los em cena e me divertir nesse processo.

As feiticeiras de Shakespeare Apaixonado nos trouxeram um processo criativo menos sofrido: vendo filme, trocando impressões, ficando mais próxima das colegas de cena, criando figurino que dialogasse entre nós, com apoio no conserto duma reforma de saia cênica pelo elenco, experimentando encenação dessas personagens de Macbeth num seminário, pirando nos acessórios de cena e comemorando quando não éramos reconhecidas pelos amigos da faculdade. Meus colegas quando nos viram, apostaram que faríamos sucesso levando a apresentação para além da mostra universitária que fazíamos semestralmente. Os colegas, o diretor e o trabalho em equipe me ensinaram que até a tarefa dificultosa de fazer teatro sem grana pode ser atravessada rindo e caprichando nos figurinos de jeans e trilha de releitura dos Beatles.

O protagonista do Processo me fez entender o funcionalismo público e até hoje me vejo travada pela burocracia como Joseph K. Meu parceiro de cena era infernalmente gozador, tive uma inexplicável paciência de Jó com ele, quando ensaiávamos uma cena na cama ele sempre prometia que na apresentação nos pegaríamos (Dionísio valei-me!), mas na noite de estréia e na seguinte ele travou embaixo do lençol porque meu ex foi filmar (este não era fã dos palcos, mas me ajudou com o registro). Levamos meses pra compreender a performance que o diretor tanto explicava e até vimos na companhia dele em cartaz, mas aos 45 do segundo tempo, tomamos os corredores paralelos do palco e curtimos performar ao reder das cenas de Kafka. Essa encenação me deu mais jogo de cintura, fez entender que nem sempre a cena precisa comunicar algo, pode só provocar afetos mesmo e que o stress cênico pode nos forçar por limites (me estranhei com a falta de empatia da sala e quase fugi para a outra turma).

Enfim o Paraíso reacendeu em mim a paixão histórica pelas “várzeas de época nunca admitidas no ensino formal”: li Laurentino Gomes e Guia Politicamente Incorreto de Eduardo Bueno para entrar no clima fanfarrão do Brasil colônia. Meu pai fez matematicamente uma estrutura com bambolês para tornar uma saia similar às das baianas, mas na segunda noite já desistimos de usar porque entre nossas entradas e saída atrasávamos as cenas e não podíamos ralentar o tempo da comédia. Colamos com a jovialidade das nossas estudantes e tínhamos que nos segurar para não aplaudir a atuação da atriz que fez a professora surtada — ela faz performances até hoje, creio eu. O pai dela me ajudou com uma dor na lombar insistente. Nossa peça final nos fez descobrir um porão com materiais de cena encostados no Ruth e reciclar muita coisa, trouxe jogo de cintura e alguma resiliência.
O teatro não é só uma escola e tanto para artistas e técnicos cênicos. Públicos de diversas idades, sexos, faixas etárias e classes sociais em diferentes noites agradeceram por se encantar, rir, refletir, sonhar, imaginar, aprender, ampliar o olhar… Será que precisamos de mais espaços assim ou que deixem os frequentadores com visão estreita e ainda por cima, sendo espoliados? Sei que torcer pela recuperação financeira do Ruth não é muito eficaz, ao mesmo tempo percebo pela Aldir Blanc que darei formações e as estou produzindo, quanto nos apertam financeiramente até que façamos tudo sozinhos - num teatro porém isso não é possível! Que surjam outras empreitadas solidárias para evitar venda e fechamento de espaços culturais paulistanos e de estímulo à produção e disseminação de arte pela via audiovisual para estes centros artísticos. Tudo isso está cada vez mais necessário, ainda mais em tempos de deprê pandêmica.