Pra pisar nesse chão devagarinho

Francine Machado De Mendo
8 min readJul 2, 2023

Voltei ao terreiro em que iluminei a cabeça (cuidaram do meu ori) pouco mais de um mês depois desse processo terapêutico espiritual. A mãe de uma amiga explica o ritual do ori assim — bem didática — e apesar dela não ser professora, também é mãe de santo. Sinto que desde que pisei devagarinho nesse chão do candomblé ganhei autonomia emocional (eu atravesso os afetos agora, eles não me tiram mais o chão). O terreiro também abre em mim uma comporta de outro sentir, feito de assombro e maravilhamento.

Assombro porque ir de encontro aos orixás na zona rural de Santo André já me desliga o modo cabeçuda. Naturalmente fui tateando para aprender mais observando ou sentindo. Quis chorar passando pela lateral do barracão, pela lembrança do amor que me rodeava na esteira poucos feriados atrás, com comida ao alcance da mão e um mundo de ralados emocionais sendo pacificado dentro de mim. No mês seguinte, na própria comemoração de aniversário da casa, que foi junto com a celebração e pedidos para Oxóssi, sentada na esteira com outros parceiros de jornada, de cabeça baixa, chorei um bocadinho porque descobri que também sou filha desse santo. E pedi bem TDHA, atirando para todo lado, porque tenho me curado, mas candomblé também não nos deixará perfeitos — uma parte significativa dessa lapidação é toda nossa. E agora parece que darei conta de fazer isso.

Foi a primeira vez que eu e meu marido estivemos nos bastidores das festas em que anteriormente só visitávamos em terreiros de amigos. E ainda me assombra não entender, mas só deixar o mistério me atravessar nos momentos em que parte do simbólico é incompreensível, mas os sons, movimentos, trabalhos e pedidos me afetam noutro lugar interno. Esse meu estofo se tranquilizou com as emoções se reencaixando e não me desesperando como antes. Entendi e abracei que tenho um ori de jovem moleque — o que fez muito sentido pelo que ouço e vivo há décadas.

Tem os momentos de maravilhamento pelo ritual também. Voltei intuitivamente à oficina do Teatro na Encruzilhada do ano passado, quando integramos o estético à espiritualidade e meu diretor, que também é do axé, dizia que ainda tinha um olhar ateu, com uma identificação inexplicável pelo estético do terreiro. Costuro essa memória pra comemorar que não estou tão distanciada assim. Me encanto ainda porque minha velha revolta com o divino deu lugar a um misto de gratidão, quentinho no coração e certeza de que nunca mais estaremos sós. É clichê escrever isso, mas a trilha sonora da produção desse texto tem uma sincronicidade curiosa: é do álbum feito para o documentário Obatalá que a “banda macumbeira da MPB” fez pra avó de santo do meu babalorixá (mãe Carmem).

Tentei falar/ escrever sobre isso para o baba algumas vezes. Mas o terreiro segue me deixando meio sem palavras — e olha que escrevo DEMAIS desde os oito anos, porque sempre foi meu modo de processar tudo que me surpreendia. No dia seguinte, é ainda um choro não muito identificado — às vezes parece que nem com esse choroso velho companheiro de guerra fico à vontade. Como diz a ciranda para Janaina dos músicos Dom e Kiko de Dinucci: “ô Janaína quando estou feliz eu choro”. Com a maior parte da vida marcada pelas emoções inflamadas, eu corria delas. Só que parei a pílula e devo ainda ficari chorona por um tempo razoável. Não quero fazer uma ode à sincronicidade do terapeuta/ escritor Jung, mas olhaí a sincronia de novo: quase me batizaram como Janaína.

Mas antes que me perca do maravilhamento que marca os poros da gente… Não entendo o nome do terreiro, nem acompanho as músicas como na umbanda, mas encontro lá muito dos meus parentes da roça na generosidade, cultura e acolhida dessa casa de axé, então é um mergulho numa névoa ancestral que dá friozinho na espinha, mas me abraça uma comida que esquenta esse inverno sem fim, um amor estendido dos amigos do candomblé, que têm paciência do tamanho do mundo porque estava perdida no barracão e um assentamento que a dança traz. Não entro no modo metralhadora de perguntas de sempre. O terreiro nos deixa um pouco sem palavra — na fala e na escrita. E pela primeira vez desde “tempos imemoriais”, confio que minha emoção processará esse mistério todo. Sempre fui ressabiada com meu emocional, mas estamos mais camaradas desde que pisei nesse chão do axé devagarinho.

Me toca lembrar do meu percurso dançando, visitando comunidades, fotografando, filmando e dividindo com alunos depois, vendo contadores tradicionais do Brasil Profundo, cantando em contato com os povos originários e espaços culturais, em São Paulo e no interiorzão. Há quatro anos já senti que encontrei o acolhimento que falta numa cidade cinza feito a nossa, na imersão Trilha Griô, no quilombo baiano do Remanso. Mas não dá pra voltar sempre à Chapada Diamantina no interior da Bahia, né? Então, a saudade e a falta de sentido paulistano pesam feio por aqui. Mas no meio do caminho tinha o terreiro no Recreio da Borda do Campo, na área preservada de Santo André. E lá o acolhimento me botou no colo. Agora parece que dá pra segurar a onda da sãopaulite que tem me feito sonhar com cidades de doze ruas: é uma casa em que os pais são como nos filmes — podemos confessar baixarias, brincar, pedir ajudas mais intrincadas…

Obviamente temos que ralar nas festas…! Tem sempre uma razão de ser, porque ainda volto com banho de ervas para minha mãe grande daqui, que ainda se bate entre a deprê dela e o nosso luto do meu pai — falando nele, fiz lá terço das almas com a mãe de santo (porque lembrei que minha família tinha saudade das procissões no interior e claro, porque às vezes ainda doi). E tanto eu quanto a yalorixá sentimos presença dele e pedimos para que fosse encaminhado numa boa travessia — rezando e sem combinar de fazer o mesmo. Ele queria que minha mãe fosse em terreiro comigo e meu companheiro — mas ele mesmo nunca foi! E no entanto tinha visões divertidamente irônicas do divino. Minha briga anterior com o panteão dos deuses possivelmente tem influência dele.

Quando cuidaram do meu ori nesse terreiro, também ficou uma mistura de lembranças com apagões parecidos com o vai e vem das memórias da festa pra Oxossi. Agora entendo porque outro amigo de axé diz que alguns macumbeiros têm pé atrás com o artista francês Pierre Verger, porque talvez o mistério ritualístico que ele viveu não devesse ser fotografado. No começo também sentia que a palavra não podia documentar o ritual do ori — talvez ela ainda não consiga mesmo! Também é sobre aceitar os limites da canoa literária com a qual atravessei depressões, ansiedades, angústias, lutos, insônias e perdas marcantes. Mas desde a festa de um dos meus santos, precisei me arriscar a tecer a espiritualidade com a palavra — porque minhas comportas emocionais estão bem cheias…!

Estou burilando esse texto há pouco mais de dois meses do meu ori. E editá-lo nesta altura do campeonato ainda ressoa forte em mim. A trilha sonora é a mesma do documentário Obatalá mencionado acima, só faz cafuné na minha orelha algumas músicas à frente do início da playlist. E justamente as músicas que não entendo o idioma são as que mais botam para correr o rio de lágrimas que às vezes tento conter em mim. É como se ainda não acreditasse que cheguei aqui — e não dá pra beliscar porque a transformação maior é subjetiva, é num sentir que nem 16 anos na psiquiatria me assentaram internamente. Fiz uns três vídeos ultimamente sobre meu orgulho dessa persistência e fé numa Fran melhor — e do quanto essa coragem colaborou na infinita melhoria das minhas relações com amigos, amor, trabalho e comigo. Foram afirmações multimídia de que meu sexto sentido tinha razão quando não desistiu das muitas religiões, vivências, retiros, meditações e encontros de arte terapia. Meu marido tem razão: é nosso principal trabalho nesta vida ficar bem.

Esse texto está há tanto tempo no forno que voltei ainda uma vez mais no terreiro, para um mutirão porque ainda temos muito em reforma lá. Meu companheiro esperava rever os pais pequenos e por a mão na massa. Mas tudo lá é prática e cura né? Pelo menos quando encontramos uma espiritualidade que nos toca ancestralmente. Tenho um ranço de ser meia boca com trabalho doméstico e que atrapalha perguntar toda hora o que precisam — tem a ver com ter sido criada como a café com leite desastrada, irremediavelmente distraída. Mas o teatro me ensina há décadas que nada deve ser visto como impossível de mudar. Varri, tirei pó e lavei duas levas de louça até ouvir o baba comentando que fui boa auxiliar na cozinha. Nisso já voltei pra casa com braço detonado porque é panela igual à das merendeiras — e cuidando da mãe e tia, tenho perdido musculação. A gente entendeu errado quando e que hora chegar, então quando caímos de pára quedas lá na reforma, nossos pais pequenos já estavam mais intensa e exclusivamente conosco. O baba tem umas conversas meio terapêuticas e provocativas comigo, que no meio já estou chorona, mas no fim das contas parece que tinha que olhar de outra forma minhas vivência e atitude que já racionalizei em terapia e gerei muito entretenimento de qualidade para os amigos em mesa de bar. Rever esses olhares e buscar transformações é doído, mas se não fosse necessário, o terreiro nem me dava vontade dessa nova alquimia com isso tudo.

Um maravilhamento meu nesse processo é que só o candomblé apoia quem precisa antes de mais nada duma melhora subjetiva interna. O catolicismo, espiritismo e o budismo agem como se tudo isso fosse nossa responsa e possível de realizar sozinha e com fé. É quase mágico estabilizar as emoções num mundo que nos enlouquece e depois nos rejeita — por isso também precisamos de manutenção. Percebo que a revisão dos 10 mil km rodados tem se feito necessária. É a segunda ou terceira vez que percebo a existência me mostrando convincentemente que preciso me centrar outra vez. Já vendi o peixe do terreiro para outras amigas com tratamentos parecidos com o meu — mas nesse movimento, caiu a ficha que virar a evangélica macumbeira não faz sentido, porque é um chamado e parece que também fomos escolhidos naquele axé específico. já tinha visto umas três festas de santo e joguei búzios uma vez em outros três terreiros, mas nenhum me trouxe para perto. Mas já tinham recomendado no começo do mestrado fazer o ori noutro terreiro, de umbanda, então quando me falaram de novo recentemente para tomar bori para o ori, achei que “cavalo selado não passa duas vezes”.

Por sentir demais, criei essa defesa do olhar cabeçudo para tudo — é muito pensamento e argumento o tempo todo, daí o sono avariado. E com o axé tenho me apaziguado com as emoções do meu ori e deixado que elas venham à tona — foram represadas demais, por um tempo sem fim. Neste processo, tenho me espantado achando tudo simbólico, mas que tudo também tem sua razão de ser. Até em destino comecei por mais fé. Com uma viagem de férias por chegar, nós perderemos o encontro de Xangô. Levarei música dele que tanto me emocionava ensaiar com minha professora de canto popular e a empolgação de cantá-la no recesso escolar. Porque a necessidade de ficar à toa está gritando entre mestrado, aulas e minha estreia como cuidadora familiar. Que bom que vamos pra natureza porque também sinto nossos santos nela. Tive vontade de jogar um pedido budista pro universo agora: que os seres sencientes possam se beneficiar! Porque nos curarmos dá vontade e esperança noutros que a procuram e precisam. Axé!

Sign up to discover human stories that deepen your understanding of the world.

Free

Distraction-free reading. No ads.

Organize your knowledge with lists and highlights.

Tell your story. Find your audience.

Membership

Read member-only stories

Support writers you read most

Earn money for your writing

Listen to audio narrations

Read offline with the Medium app

Francine Machado De Mendo
Francine Machado De Mendo

Written by Francine Machado De Mendo

Brincante,professora de artes na EJA escritora,"gateira",contadora de histórias,nadadora viajante,escritora, macumbeira,pesquisadora e batuqueira.

No responses yet

Write a response