Revirando o baú de memórias do meu pai emprestado

Anos depois de não dar conta de contar histórias em casas de repouso, voltei à uma delas para matar uma saudades de três anos e tralálá: visitei meu tio Arantes. Só este meu pai postiço para me fazer voltar ao bairro andreense em que dou aula em dia de folga (Parque Novo Oratório).
Cheguei à periferia de Satãndré já com todo boletim familiar atualizado: a doença degenerativa PSP já o levou um bocadinho longe de nós: está muito magro, não pode levantar sozinho porque cai (essa foi uma das causas dele ir para lá), não dá para entender o que fala e às vezes cria enredos peculiares. Na tarde da minha visita reencontrei tia Fátima, mulher dele, que já o ouviu perguntar do namorado dela (?!). Não se pode dizer que já não tinha todo o contexto em mente. De 2020 para cá não o visitamos na casa dele porque esta tia estava com tanto medo da pandemia que boa parte dela não abriu a porta (quem tentou furar a quarentena deles foram meus pais, não eu).
Com tanto alerta, já fui em dia de folga, que era pra não dar aula chorando depois. Levei a caixa do divino e o pandeiro quadrado que criei inspirada nos instrumentos alternativos da minha prima/ professora de canto Rita Maria Brandão. Tio Arantes tocava violão e durante muito tempo a música protegeu algumas áreas da doença — que no começo achávamos que era Parkhison, mesmo sem tremedeira.
Alguma área dentro de mim tremia e não dava para alcançar e acalmar antes de revê-lo. Quando tia Fátima desceu, falamos rápido e ela me esperou porque não a via há três anos. A gente tem meia hora de visita, então subi rápido.
Lá em cima uma smarTV tocava samba, o que segurou lindamente minha tremedeira interna. A enfermeira falou onde ele estava, mas na pilha do meu pouco sono recente, ia procurá-lo lá no janelão do fim da sala. Parei porque o reencontrei numa das primeiras cadeiras. Acho que esta foi uma das primeiras fichas que cairam: não importa o estrago da doença, tio Arantes ainda está lá. O falante que habita nele ainda quer tagarelar, mas no começo achei que o som atrapalhava e pedi que abaixassem. Sua voz está baixa, para dentro e fiz a mesma performance das antigas visitas ao avô pernambucano da minha prima Nathalia: mexi a cabeça e fiz cara de paisagem. Foquei em fazer cafuné no tio-pai de coração.
Outra enfermeira perguntou se era filha e respondi:
- Sobrinha! — mas a vida toda tive mais problema com a ideia da partida dele do que com a do meu pai. E temos mais em comum do que tenho com “seu Benê”: arteiros, mochileiros e brincalhões… Tio Arantes foi de carona para Bahia, tinha histórias da época de hippie maconheiro (até hoje os estudantes me chamam de riponga), roubou uma festa da minha prima Carol porque é leonino raiz, ganhou festival de música há décadas e teve interesse do cantor Mauricio Manieri nas composições dele há uns aninhos…
E por falar em música… Apresentei o fake pandeiro quadrado para meu tio. Ele ensaiou tocar de um jeito inédito: na parte traseira do instrumento. Já a caixa, não deu muita bola. Cantei a música dele que ilustra esse texto. Sempre fui boa de cantigas em ocasiões hospitalares.
Embora doença degenerativa tenha roteiro de dramalhão, meu tio riu mais que meu pai nas últimas 132938924 visitas para ele, cuja saúde mental está boa. Outro morador de lá passou algumas vezes na poltrona do tio, falando que ele estava alegre nesta última sexta e que gostava de brincar.
Também criei umas brincadeiras para lidar com o novo tio Arantes: que não toca, não entendemos e corre risco em casa, mesmo entre parentes (que já não tinham mas braço para levantá-lo). Lembrei da professora e diretora cearense Lourdes Macena, cujo grupo pesquisou uma dança entre caiçaras e a apresentou, concluindo que a se uma memória está ativa, mesmo que não em movimento, ela não se perdeu. É um pouco por ai com tio Arantes: desde ontem lembrei do nosso encontro sem querer no show dos Rolling Stones no Rio e meus amigos o amaram, a vivência dele de ser preso na ditadura no interior e ter que andar descalço na praça com o sol que fritava em Oswaldo Cruz/ SP, as participações na banda da igreja católica e nas apresentações da Paixão de Cristo no ABC… Tudo ainda pulsa, mesmo com ele lá e cá.
Aterriso na casa de repouso Sol da Manhã porque o tio quer levantar, aviso a enfermeira e ela vem acalmá-lo. Soube que ele já deu sustos levantando na hora de deitar. Ele tenta beber a xicara de bolachas. Mais tarde, voltando com tia Fátima, ela quis saber se o tio me reconheceu. Acho que não dá pra saber, mas fico com o espanto e o coração quentinho dele rir no meio disso tudo. É tão budista iluminar a situação pela risada… Os Machado chorariam cântaros e os Mendonça dariam trabalho xingando. Resolvo não parecer mais com eles, ao menos enquanto estiver centrada.
Nem cheguei em casa e minha prima irmã já me escrevia perguntando da visita. Falando com ela, entendi e senti o que quero fazer do que fizeram comigo: fazer correr o que o tio me passou, teimar em construir beleza nesse mundão, me manter como ele: alegre, falastrão e envolvente e menos como a familia dramaqueen. Não importa que a parentada fale dele e dos demais maridos das outras tias como agregados. Meus genes bichados não escolhi, mas posso manter viva minha arteira contadora de causo e brincalhona que tem muito do tio Arantes. Tem homenagem maior que cair muito pra lá do pé da árvore genealógica?