Tocar me conecta com meu 1o tambor
Nesta sexta, levei minhas narrações para circular. Duas novas e uma xodozinha retrô que me acompanha desde o Sesc Registro: Os Gêmeos que Fizeram a Morte Dançar, Mãe d’Água e a lenda indigena de surgimento da chuva. O processo criativo traz tanta ideia nova para incrementar os ensaios e ao mesmo tempo, um misto de ansiedade e expectativa para compartilhar, que cruzei a cidade num tempo igual ao trabalhado na escola em que meu amigo coordena e me chamou para homenagear os professores.

É irônico escrever disso num dia em que sinto “uma bateria ruim fazendo esquenta lá nos bastidores da minha cabeça”. Tenho mudado a forma com que lido com a batucada que já me acompanha há uns aninhos, desde as aulas de djembei até os ensaios em bloco feminino de percussão para o Carnaval — isso tudo antes da quarentena. Além das histórias, levei a caixa do divino nesta travessia por São Paulo. Já tinha percebido que tem beleza nessa batucada freestyle, levando a Alvoradinha (que acabou de ser batizada) pras rodas de cantigas populares com minha turmas. Mas nos últimos tempos o olhar de um professor me tocou e o aquecimento que dei aos professores também. Propunha cantigas e percussão corporal light para os homenageados, a fim de convocarmos nosso primeiro tambor, o coração. No fim das contas quem mas precisa entrar em contato com o tambor original de fábrica sou eu mesma.

Já toco e canto informalmente há algum tempo. Mas dizia tanto aos estudantes que não precisamos ser artistas para se expressar pela arte, só que eu mesma batucava e cantarolava no miudinho, praticamente na coxia. Comecei faz pouco a compartilhar nas redes experimentações numa das paixões mais dificeis em que persisto: tocar e cantar. Tenho mais retorno do que nas minhas linguagens mais familiares. Lembro das professoras de canto que preferiam uma desafinada emocionada a alguém dominando a técnica, mas sem paixão. Na homenagem desta sexta, brincava com os professores “canta comigo, não me deixem emocionar sozinha”. E se tem alguém que perde a voz com o atravessamento do que sinto sou eu.

Entre uma aula e outra em que ocupamos o pátio com musicalidade popular, comecei ver beleza nessa cantiga batucada que nunca fica pronta, está sempre em processo, partilho e beneficio quem não imagino. Parece o olhar do Paulo Freire, de que estamos sempre inacabados. Aceitar que a vida nos sequestra o tempo que precisamos para apurar a técnica num estudo percussivo/ musical adulta traz uma generosidade rara conosco. E confirma uma percepção que ficou mais nitida na pandemia: sou eu quem preciso da musicalidade popular, não ela de mim.

Nas rodas com os professores da EMEF Tarsila do Amaral ontem, pedi que meu amigo distribuisse papeis coloridos com trechos das cantigas populares que tenho levantado e trabalhado com os estudantes, para que no momento em que os personagens gêmeos da primeira história tocassem os tambores mágicos contra a morte, me ajudassem a cantar. Para minha ansiedade, perceber o descompasso entre batidas e cantoria e voltar a marcar nosso coração é terapêutico e um ganho na escuta — que reflete em tantos outros momentos vida afora.

Mais cedo comentava aqui em casa: não toco para ser virtuose do jazz, mas porque preciso. Toco para convocar meu primeiro tambor a embarcar junto nas narrações, ensaios e até na primeira qualificação do mestrado — na qual fiquei mexida do professor me chamar de musicista e reconhecer a relação entre ser mulher de terreiro e mnha pesqusa.

Na narração da Mãe d’Água brinquei no final de um jongo: “lêlêlêlê… com esse finzinho é fácil de participar”! Quando passamos os papeis para os educadores e os ouvi receosos, também brinquei: “calma, não é teatro interativo”! Eu brinco muito por neste território das artes. Além de ser meu super poder: com o bom humor já paquerei, me protegi, fiz amigos, afastei gente dificil e corri de briga.

Quando comecei postar meus videos batucando e cantando, quis dar exemplo aos alunos: “vê só… não está perfeito, mas aprendo, compartilho e troco com o processo criativo”! Lá para as tentas, minha mestra da Pedagogia Griô Lillian Pacheco celebrou: “olha a instrumentista nascendooo”! Na mesma semana, uma supervisora fez uma aula minha, jogou uns confetes e avaliou: você parece biblioteca: a gente já vivencia, sabe da história… Na época fiquei mais mexida com o faxineiro de uma das escolas comentar que adorava quando minha aula levava a cantoria para o pátio.

Em meio aos ensaios do projeto Teatro na Encruzilhada, relembrei a toada do boi de Pindaré, que a artista e mãe Thamile cantou no meu podcast Pegada Griô: gravei, ensaiei, usei no mestrado, na cantoria da homenagem na EMEF ontem e é uma das poucas batucadas que não me perco entre a caixa e a voz, já fiz sem a letra, sem brancos e minha voz não regateia, mesmo me emocionando.

Num desses estudos compartilhados, comecei a agradecer aos mestres pelo caminho e me espantei de serem mais do que pensava. Uma biblioteca acho exagero da “chefe da chefe”, mas tenho um corpo livro e ele resgata o que vivi mais rápido do que minha cabeça com referências empilhadas. Estudar mais próximo da tradição oral é um alumbramento continuo.

Uma das professoras cantou a música acima nesta sexta, não falou só o verso do papel para que participassem na primeira narração. É um coco, mas também música de protesto, que parte dos indigenas cantam em manifestações. Falar com a plateia nesta linguagem, de bate pronto e sem resistência é um reencantamento continuo.

Lembrando o quanto estressei nos últimos tempos, com saúde reclamando, trabalho pesando e familia teimando em não se cuidar… tudo que precisava neste ano demorado a engrenar trabalhos artisticos era essa mão na massa na cultura. Enquanto não veio, aluguei muito amigo pelo caminho. Bom, mas que bênção que eles estejam por ai, mesmo com nossas perturbações…
