Travessia da pandemia banhada a cloro

Foi de um movimento kamicaze necessário voltar à piscina. Explico: estava há meses tentando tourear a angústia da pandemônia fazendo yoga, caminhada e pilates com vídeos na internet e fazendo valer o condomínio que mantém os jardins do conjunto em que moro — dando voltas e mais voltas nele. O senão de ser auto personal trainer é que devido à ansiedade e irritação com o longo inverno congelando no freezer do pombal em que moro, enfiei o pé na jaca e em pouco tempo a lombar pediu trégua.
Estava em telemedicina desfiando esse rosário que o auto cuidado não era o bastante para me deixar a salvo da insônia periódica, quando o psiquiatra recomendou flexibilizar ligeiramente a quarentena. Achava a academia em que me alongava antes ainda perigosa, pois dividíamos tatames com dança, luta, cárdio e musculação — e meu médico mesmo percebeu na academia perto da casa dele que um ou outro funcionário tomam medida de segurança, enquanto a maioria abusa da emergência sanitária. Mas para o doutor, a aquática já não era tão arriscada. Ainda meio cabreira, perguntei para uma amiga médica da família (que tem que entender vários sistemas nossos, porque não tem especialistas diversos nos postos) e ela não achou perigoso também.
A pulga atrás da orelha baixou a guarda e dias depois, voltei à água. Estranhei algumas mudanças — o quanto somos poucos em aula agora. Havia impressões contraditórias também. Estava com tanta saudade de nadar, fazer hidro que senti falta até das senhorinhas tagarelas com as quais encontrava porque me movimentava lá em horário de desocupada, já que trabalho à noite. Quis saber de várias das sumidas senhorinhas. Tive medo de perguntar e o Covid ter levado alguma delas. Essas dúvidas saudosistas travaram na garganta e nunca mais saíram de lá.
No primeiro dia um ensaio de pânico ameaçou me impedir de dar tchibum. Mas água é como meio que meu habitat de origem: lá me percebo calma como em nenhum outro lugar. Eu respiro fundo. Fico presente. Me sinto tão inebriada pela água que me pego quase chorando algumas vezes. Então “fiz a egípcia” com relação ao meu cagaço e segui a recomendação para as manifestações políticas “vai e se der medo, vai mesmo assim”!
Quando senti o cheiro do cloro, eu que já fico meditativa em atividade aquática de tanto encantamento, fiquei com os olhos embargados: não tinha noção que a saudade era tanta! Meus dois médicos diziam que o cloro não é parceiro do coronga. Era a primeira vez em décadas que estava feliz engolindo água. Mesmo assim, no primeiro mês só fiz uma vez por semana, porque ainda me sentia “toureando” os ensaios de pânico.
Me surpreendi em momentos inesperados. As professoras de hidro com quem pulo feito uma pipoca atualmente gritam tanto e sobem tanto a música que vivo perguntando se não é um perigo elas trabalharem cheiradas e se estão comprando em alguma boca na comunidade vizinha. Elas se divertem porque as pessoas riem quando “loucas mansas” como eu falam a real. Mas para quem vai aliviar a ansiedade na hidroginástica, vira um tiro no pé seguir a pilha delas: saímos da água com taquicardia. Deve ser o perfil das turmas de dia, penso eu. Tento fazer aula à noite. Por algum tempo eu e a agenda de atividades fomos felizes, mas em semanas com poucos na água, separados por raias e num sossego sem fim, a turma noturna voltou enchendo vestiários, tomando cervejinha no salão de espera e causando um apreensivo retorno do meu medo. Meus companheiros de piscina pareciam os saudosos estudantes com os quais tento contato “fazendo sinais de fumaça” no WhatsApp. Desisto e volto à turma que suspeito não poder passar em exame toxicológico de dia. Dou uma de rebelde. Faço tudo na velocidade que me dá na telha, mas me poupo da taquicardia. Brinco que só encaro atividade de vovó para poupar a lombar e o joelho, mas depois de estranhamente emagrecer na quarentena, jurei não reclamar dos exercícios que abracei.
Com a natação, as surpresas foram outras. Nadar cachorrinho me faz sentir arreganhando o coração, mas também acaba o aperto angustiado no peito. Descobri que nadar de costas só batendo as pernas, com os braços ao lado do tronco é uma meditação fora do tempo — tipo calendário maia! Respiro profundamente até bater com a cabeça na borda. Numa das manhãs em que fui colocar endorfina em dia, uma menininha me pede ajuda para fechar sua sacola plástica no vestiário. Proponho que fechemos juntas, ensino para que ela consiga fazer depois sozinha, vejo o quanto somos professoras quase que o tempo todo e quando já estou pulando no cloro, ela passa dando tchau no vidro. Eu — pouco teatral — respondo acenando com beijos.
Percebo animada que a professora me pede periodicamente que faça uma quantidade determinada de chegadas e circula, arruma pranchas, anota as chegadas na lousa, estica a raia, coloca os acessórios de hidro em ordem… Me movimentar na água é uma das poucas práticas na qual tenho autonomia.
Já a dança, amor velho de guerra com o qual brigo e reato há anos, caos total na repetição dos movimentos! Mas isso é assunto para outra crônica. E só por hoje, celebro que num ano de tanta perda, saudade e indignação, dilatei meu espaço para me movimentar e mantive essa freqüência amplificada dando quentinho no coração até o fim desse turbulento e infinito ano.