Um mês em looping na série Segunda Chamada

Francine Machado De Mendo
5 min readFeb 25, 2022
Podíamos atuar facilmente no lugar deles

E lá se foi o mês mais curto e ao mesmo tempo um dos mais intensos na educação fundamental básica. Mais especificamente na Educação de Jovens e Adultos II — EJA ( talvez o antigo supletivo do ginásio), que provavelmente você de fora da área nunca ouviu falar. Onde vivem, do que se alimentam e como se reproduzem esses jovens e adultos abandonados pelas margens pela educação pouco significativa que encontraram ao longo de suas vidas? Não, hoje não passaremos no Globo Repórter.

E por falar em Globo… O noticiário dela mesma fez uma matéria denunciando que uma das escolas em que trabalharíamos começou reforma há um mês, parou nas chuvas de janeiro, alagou tudo com cheiro de rato e pomba morta do telhado e na véspera da volta às aulas avisou as famílias que o conserto ainda não acabou, seguiriam todos em educação remota. Aquela para a qual os pais têm que parar a vida para cada clique do filho. Sim, durante o dia há crianças nas EMEIEFs em que trabalhamos. A EJA é uma espécie de puxadinho noturno da educação convencional.

E que puxadinho! Não por acaso, estudamos tanto Carolina de Jesus: ocupamos quartos de despejo nas EMEIEFs e nem todas nos aceitam porque afinal fazemos com que realizem hora extra. Nas minhas atuais estamos até bem acomodamos: da reformada fomos para uma municipalizada perto e na outra temos até jardim do clube ao lado.

Voltando ao canteiro de obras, achei que essa mãe que reclamou pro SPTV não merece palmas, merece o Tocantins todo. Três pessoas trabalhavam na EMEIEF virada de ponta cabeça, que nos faziam rir quando previam terminar no fim de fevereiro. Os trabalhadores foram multiplicados por 10 e pelo visto depois do Carnaval voltamos mesmo para lá.

Uma das comunidades escolares nas quais atuamos é Jd. das Maravilhas. É forçoso admitir, mas meu pai não deixa de ter razão que quando as ruas ou bairros têm esses nomes, não encontramos na região o que inspirou batizados tão otimistas. Mal se foram três semanas de aulas e assaltaram nossa coordenadora na porta da escola ainda em ruínas. Não foi só um susto como das outras vezes. Ela foi machucada, o vizinho desesperou para ajudar e ficou batendo o carro dele no dela — ainda não entendemos se para espantar os assaltantes ou para que não conseguissem levar o carro dela. Há uns dez dias eu e outros que vêm de São Paulo trabalhar no ABC temos medo . Inclusive voltei desavisadamente a visitar a memória de ameaça de aluno, estudante queimando lixo e a polícia o levando algemado há sete anos, na mesma escola. As lembranças, essas fanfarronas, podiam varrer essas memórias para baixo do tapete. Nesta semana nossa reunião pedagógica foi terapêutica. Não sei que milagre temos psicólogo nos apoiando. Deve ser porque se trata de ano de eleição.

Nessas horas me acolho na literatura. Das férias para cá li uns cinco livros, a maioria para desanuviar: narrativas livres, leves e soltas. Porque no chão de escola fazemos “vale a pena ler de novo” com Carolina de Jesus, que quando imprime em sua obra “pobre só é feliz quando dorme” não exagera. Na última quarta deste curto e intenso mês reuni os estudantes em roda no pátio da outra escola para conhecermos a história de vida deles. Sempre insisto que aprendo com as narrativas deles, que só levo estudos e vivências para as aulas, mas o percurso de cada um é meu professor.

[Pausa para desabafo: estou para começar a dar encontros brincantes numa ONG de arte terapia que trabalha com inclusão. Do tanto que o trabalho deles me tocou no estágio lá, dei uma avisada leve à turma: “se quiserem falar mais do trabalho ou escola, pode ser bacana porque caso se abram mais, abraço vocês, mas falo isso porque não sou terapeuta”].

Sinto que no geral eles não tem espaço para isso porque umX estudantX trouxe uma narrativa tão marcada por traumas, bloqueios e experiências que gostaria de ter apagado. Quis muito convocar abraço coletivo na finalização, mas travei das quatro porque nunca sabemos o que rompe protocolo sanitário de tanto que já flexibilizaram em muitos contextos. Foi quando dois aprendizes foram abraçar que também fui. Um educando que frequenta grupo de apoio pediu que deixássemos lá o que ouvimos no colégio. Falei para sustentarmos as histórias. Mas não conseguimos por nossos corpos em movimento coletivo de cura, pois tínhamos acabado de ouvir um roteiro de filme do Almodôvar.

Nestas horas comprovo que professores de roteiro tinham razão “a vida supera qualquer ficção”. E me questiono como superar o “bônus” do aperto da educação se com meios períodos intensos assim levamos vários outros turnos da semana para pacificar o gatilho que tudo isso nos gera?

E por falar em aperto… Em paralelo, tive a novela mexicana de correr atrás do vale transporte descontado e não carregado entre funcionários, máquinas, atendimentos e servidores. Em vão. De novo e de novo me senti o personagem Joseph K de O Processo, do Kafka, tomando “pelé” eternamente da burocracia alemã há anos atrás. Irônico que montei esta peça, mas o grande laboratório foi depois da licenciatura.

Mas não se dê por feito de trouxa ainda! Pois também encarei uma via sacra de 6 horas atrás de remédio na Farmácia de Alto Custo para conseguir a exorbitante quantidade suficiente para 15 dias. Nesta tarde em que saí com dor de cabeça do Ambulatório Médico Especializado, uma filha pegando remédio para o pai veio com ele na área de espera gritando, xingando, batendo em mesa e empurrado cadeira porque pediram para vê-lo. Devia estar no carro, pois chegou de soro, cadeira de rodas e grogue. A moça emputecida acende um sentimento ambíguo dentro da gente porque tememos que bata em nós, mas também me pergunto porque não estamos todos tocando fogo nos burocratas? Realmente deviam estudar se não tem Rivotril na nossa água.

Depois dessa pendenga sem fim com órgãos lentos, máquinas que não funcionam e atendimentos eletrônicos incapazes de nos por em contato com um funcionário, não me pergunte porque estou condoída com a falta do Carnaval. Nem porque todos deveríamos ter o direito humano universal de beber até perder o rumo nesse feriado. Porque nós brasileiros merecemos um céu exclusivo na vida do lado de lá — o espiritismo “disneylândia” dizia que esse espaço privê era dos artistas, mas creio que os brasileiros devam ocupá-lo assim que subirmos sem escalas devido às nossas penitências.

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Francine Machado De Mendo
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Written by Francine Machado De Mendo

Brincante,professora de artes na EJA escritora,"gateira",contadora de histórias,nadadora viajante,escritora, macumbeira,pesquisadora e batuqueira.

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