Uma carta lá da curva da maturidade

Francine Machado De Mendo
6 min readFeb 23, 2021

Te espiei pelas fotos retrô que encontrei e está difícil de escolher o que te revelar do seu/ nosso futuro. Sim te escrevo décadas adiante. Mas não me pergunte como essa correspondência será entregue! Suponho que não será com aviso de recebimento ou Sedex 10.

Mas vamos lá: essa carta traz alguns spoilers, que são relevações não solicitadas do nosso futuro. Como nunca ligou para saber do filme ou série antes de ver, serei generosa dos vislumbres de futuro que estão por vir. Aperte os cintos e pegue as pipocas. Uma água também vai ser de grande serventia.

Antes de mais nada: obrigada por começar a terapia cedo. Isso está nos salvando aqui em 2020, no meio duma pandemia provocada por um vírus, que está sendo muito mal administrada por sinal, nesse “paiseco” em que nos encontramos à deriva. É, estamos gerenciando riscos entre se cuidar e fazer quarentena, aparentemente porque “atravessamos o samba” da natureza e a mesma quer sobreviver- aparentemente para isso ela precisará de muito menos de nós. Soa catastrófico não? Sim e não. Nesta altura do campeonato, já aprendemos a conviver com as contradições da vida. E graças à sua rendição precoce à terapia, cá estamos nós, desaceleradas na marra, criando, se exercitando, estudando, meditando e ainda mirabolando projetos paralelos aos riscos sanitários. Aperte os cintos!

Antes que fique com a pulga atrás da orelha: não nos mantivemos no jornalismo. Não é que não deu certo: deu o que tinha que dar. Ainda assim, lá se foi quase meia vida na comunicação. Ao contrário do que muitos passaralhos, os famigerados cortes em massa, dariam a entender para sua sensibilidade, éramos boas nisso sim. Apenas não nos contentávamos com reconhecimentos que só afagavam nosso ego e a busca por um trabalho significativo não tinha lugar entre plantões, chefes carrascos e a ânsia da mídia por matérias sensacionalistas. Não torça o nariz: muito embora morar nas redações e assessorias tenham te deixado baqueada, teve lá seus lados bons: viajamos muito graças às matérias e divulgações, caímos de amores pelo rádio e TV, fizemos críticas de livros, cobrimos turismo- o que soa como um sonho ao nosso espírito sagitariano, fomos à 1a coletiva de imprensa do Lula… Ia dizer que não tenho saudade de suas espinhas, magrelice e pique irrefreável, mas da sua fé e alegria em tudo, no primeiro mandato dele, admito que sinto falta. Falta de escrever ou atuar com o que nos fazia sentir que era significativo sempre foi escasso nessa área. E deixa eu te abrir uma cortina para um susto: o jornalismo como fazíamos e lembramos, já não está mais entre nós.

Mas calma! Foi um dos erros mais acertados que cruzamos pelo caminho. É sério! Se pudesse pedir que recalculasse a rota daí pra cá, te proporia que fizesse o teatro livre no ensino médio e repare em como essa dança da educação física te faz bem: invista em ambos enquanto tem tempo! Ah é mesmo: esse percurso não muda só com essa carta fantástica. Lembra quando foi procurar trabalho como assistente na escola infantil duma vizinha? Você tangenciou a área aí no colegial, mais velha ensinando redação voluntária, depois inglês em empresas e… Surpresa! Hoje ensinamos artes para jovens e adultos numa prefeitura duas cidades para lá de onde ainda moramos (não mudamos para Paris, mas uma vez vivemos perto de estação paulistana…). Não estranhe: é bem mais significativo que a comunicação. Você cria aulas engraçadas ou criativas. Os poucos que embarcam, criam e pesquisam te encantam. E às vezes você ainda usa tudo isso como matéria prima para suas criações. Na nova área, você fez amigos que o jornalismo não possibilitou. Repare neles! A instabilidade da comunicação não viabilizaria vínculos tão estreitos. Sim, aqui você ficará anos e o que é melhor: aproveitará as férias que o jornalismo sempre abortou. Abraça garota!

E por falar em criações, não lembro se aí pelo meio do ensino médio ainda desenha. Mas hoje em dia detestamos isso, apesar de relaxarmos com pintura. Se ainda não fui clara: éramos boas na comunicação, mas na arte educação somos ótimas! Tenho outra revelação bombástica: sua mãe tem razão — o concurso apaziguou tanto sua angústia e ansiedade que depois dele conta histórias, forma professores, faz projetos e cria livros com mais frequência que na precariedade do jornalismo. Não é incrível? As pessoas te reconhecem quando canta, publica, interpreta, estuda e multiplica narração e Teatro do Oprimido. Décadas depois somos especialistas nessas artes. Muita coisa não? Segure a ansiedade para a boa nova: sei que doeu a angústia travada no peito por tanto, tanto tempo… Mas hoje tem nome para suas poesias meio góticas dessa fase de drama e dúvida: nós rodamos por muitos médicos, fomos ratinho de laboratório com diversos remédios, mas quando acertaram a dose, o remédio e você acertou no médico… Bingo! Não vivemos mais em TPM e a vida pode ser bonita, mesmo em meio à quarentena. Foi nela que passei por uma descoberta doce: sou maior, menos animada, muitíssimo menos ruiva e tenho até fios brancos salpicando nossa cabeça, mas não me troco por sua longa fase gótica punk corta pulsos magra, sem marcas cirúrgicas, empolgadíssima e a um passo de ficar anos e anos pintando o cabelo de “Jessica Rabbit”. Quando desencanamos de ser o que não somos, habitar essa pele ficou confortável. Confia, menina!

Ei, não se magoe. Não é uma crítica pessoal, mas somos mesmo feito vinho, melhoramos conforme envelhecemos, muito embora dorzinhas não nos deixem em paz quando nos tornamos semi novas. Mas você pôs reparo nas linhas anteriores? Somos escritoras, finalmente! Já são dois livros infanto-juvenis e quatro coletâneas. Caímos de amores quando os amigos mandam fotos dos filhos lendo, pedem autógrafo e elogiam.

Estou te revelando as coisas aos borbotões não é mesmo? Até me esqueci de te dizer que ser quem você é traz um olhar único do mundo e a despeito de todos os desencontros, seu jeito ainda será uma mistura de remédio e marca pessoal. Vai por mim, essas poesias corta pulsos que tanto cria não farão sentido em algum tempo. Não há nada de ruim com seu cabelo, o mercado é que foi lerdo para disponibilizar cremes sem enxágue para cachos. Depois deles, mais um ou outro cuidado, vai pedir seu cabelo em casamento! Encontrar beleza no corpo com o qual você tanto briga é questão de calibrar o olhar. Ou amadurecer. É esse corpo que atravessará contigo trilhas incríveis, receberá elogios que te surpreenderão, vai gerar tanto bem estar quando instaurar o auto cuidado como rotina e vai chorar contigo de alegria embaixo da cachoeira mais linda do centro oeste. Eu sei, talvez sozinha você não dê conta disso tudo. Mas o tratamento está no horizonte, então persista…!

Não preciso recomendar isso a você, tem tendência à teimosia. Agora, talvez caia da cadeira aí: você ainda ouvirá as músicas dos seus pais e cantará junto, achará lindo, verá shows e ainda encontrará amigos com a trilha que seu pai te apresentou como pano de fundo. Por falar em amigos, você reciclará muitos dos seus. Aconteceram golpes no país então para manter a sanidade foi preciso deixar de ler, ver e ouvir os reacionários. Não se preocupe com isso ainda: graças ao passado sindical do pai você ainda fará paralisações, passeatas e manifestações. Parte do seu espírito jovem segue aqui comigo.

A propósito sabe essa queda por caras mais velhos? Por incrível que pareça é nos mais novos que talhará em parceria essa tal cumplicidade. Não seria possível passar a régua e contabilizar quantas dores de paixão isso levou. O que importa é que no 3o casório vocês riem, se ajudam, mimam uma gata e fazem planos. Antes tarde do que mais tarde!

Adendo derradeiro: não continuiramos espírita. Você terá os altares mais ecumênicos de todos os tempos e vai misturar fés. Mas não darei detalhes porque sem poder voltar a um deles com medo de romper a quarentena, seria mais nostalgia do que consigo lidar agora…

Isso é fato: seguiremos dramáticas, mas agora você tem as artes e militância para extravasar. Em alguma dessas curvas da vida fanfarrona podemos nos encontrar. Em meio a essas tempestades todas, tudo que queria era te abraçar.

Não esquece: valemos muito a pena!

Franzoca Brandão

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Written by Francine Machado De Mendo

Brincante,professora de artes na EJA escritora,"gateira",contadora de histórias,nadadora viajante,escritora, macumbeira,pesquisadora e batuqueira.

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