Uma estivadora em minha boca

Francine Machado De Mendo
5 min readAug 30, 2023

Sempre brinquei com meus dentistas que são meio estivadores com conhecimento de causa do nervo, raiz, polpa… Nesta terça confirmei isso arrancando um dente condenado para futuramente fazer implante. Foram duas poucas e pouco de consulta pra tirar tudo, pq o corpo parece que se recusa a abrir mão de um dente, mesmo que depois tenhamos descoberto que tinha junto dele um pedaço de equipamento do dentista anterior😠

Quando a dentista colocou uma espécie de britadeira bucal na minha boca, confirmei que são estivadores meio intelectuais mesmo. É feito a musculação: começaram feito um avanço e tanto, anos e anos depois, seguem meio primitivos e brutos. Eu nem sou tão sensível à dor física, causo mais quando o psíquico descompensa mesmo.

Então lá pras tantas estava em operação agarrada às guias de Obá, Oxalá e Iemanjá, todas no meu pescoço. O que a assistente mais fazia era limpar minhas silenciosas lágrimas. Porque tenho dessas, de usar situações dificultosas pra liberar o choro contido de outros atropelos afetivos. Acho que também dá nos nervos ouvi-los falar que saiu raiz, não saiu lesão… Comecei a pensar nas MPBs macumbeiras e logo cantei em pensamento mantras, músicas para entidades do catolicismo popular, canções macumbeiras do meu processo criativo de 2022 Teatro na Encruzilhada e também pontos da umbanda. Nisso já tinha fechado os olhos num esforço de não acompanhar cada avanço e obstáculo da cirurgia.

Sei que entrei numa experiência meio metafísica com a Liga da Justiça, que reúne essa galera que mencionei, já ocupou meu altar e ainda rezo musicalmente para eles. Vi minha mãe Obá me por no colo, pai Oxóssi baixar a flecha e me acolher, Maria Padilha me abanar, Buda pacificar meu corpão querido passando por um cagaço novo, Omolu e suas palhas girando pertinho, pertinho de nós…

Fui segurando a onda assim, às vezes abrindo os olhos e contando:

  • Meus dentes são chatos de extrair.
  • Obrigada por avisar agora! — ouvi.
  • Bom, só tinha memória da extração dos dentes de leite.

Impressionante como eles entendem a gente falando gromulu. nossa língua fictícia para jogos teatrais, usada também para situações com acessórios sinistros na boca. O dentista é até hoje, o único profissional que me deixa quieta, porque como me contou seu Benedonça: “você falou papai pela primeira vez e nunca mais parou”. Ah sim, vi seu Benê com seu riso meio apito, meio assovio, tio Arantes tocando violão na beirada da cadeira de dentista… Dei licença de chorar a saudade ambos. Tudo quando fechava os olhos, claro, pq sou imaginativa e não esquizóide 🙃

Sei que o rolê odontológico demorou tanto que do meio pro fim já cantava a melodia das músicas que me acalmaram antes, audível, depois só cumprimentava os orixás na minha cabeça, já que o conversê da assistente, dentista e estagiária só piorava:

  • O dente está anquilosado, já tinha visto um desse?
  • Na faculdade. Um estudante rendia o outro e no fim, o professor teve que terminar.
  • Nossa nunca limpei uma lesão que parecia uma caverninha.
  • Acho que na graduação o professor mostrou uma foto ou vídeo de uma assim.

E eu só pensando na minha velha e boa pergunta jornalística: “em linguagem de gente isso quer dizer o que”? Nessa hora, sempre lembro e recomendo para eles o filme A Vida Secreta dos Dentistas, com personagem delirando vendo paciente no carro dele, em meio à desconfiança da fidelidade da mulher e a família inteira passando virose uns para os outros, sem dormir, mas só o pai parecia dar uma delirada.

Nessas consultas bizarras sempre fico sem entender como alguém escolhe essa profissão. Se fosse eu, nunca mais beijava ninguém sem o dentista atestar que os tratamentos estão em dia. É surreal que eles entendam tanto de um micro pedaço nosso: nervos, raízes, lascas de dentes. Até que a dentista desabafou:

  • O transplante do Faustão foi mais rápido… Aliás já pensou que bacana fazer uma cirurgia dessa?

As auxiliares discordaram. De olhinho fechado via o lama Padma Santem, que vê essas intervenções cirúrgicas como ações de sabedoria irada, final não é qualquer zé ruela que tem coragem de estudar e cortar quem precisa de cirurgia. Ah sim, confirmei: os dentistas realmente queriam ter sido médicos.

Depois de ligar ar condicionado, desligar, por música, a dentista ensaiar xingar várias vezes e só desabafar no fim, ter fé imaginativa, eu já pensava e chorava: “socorro deus”! Tomava banho de lágrimas salgadas, mas impressionante como chorei fina, quietinha por fora e musicalmente em polvorosa macumbística dentro.

Não deu para por o pino do implante, porque tinha que esperar a melhora da limpeza da lesão. Abri os olhos e a dentista costurava uma telinha no meu buraco recém aberto e limpo. Fechei os olhos pensando que essa treta é impressionante, como a gente vê o ouve tudo isso? Inveja branda da prima que se trata num dentista que usa um vaporzinho que apaga quem vai se tratar.

Colocaram gaze pra eu morder em cima da telinha. Fiz perguntas da recuperação, comida, remédios, ainda falando em gromulu. Só posso pasta, tudo frio e sem lascas, fiapos… Alguém emagrecerá aqui em casa! Vi ainda uma foto do pedaço de equipamento odontológico esquecido no dente que arrancaram de mim. Como isso não aparecia no exame panorâmico e tomografia? Pedi a imagem para processar o carniceiro que me deixou com dor e sensibilidade demais, a dentista explicou que pode quebrar com qualquer um e eu:

  • Sim, mas quando seu irmão tentou fazer canal e coroa, também quebrou, mas ele me deu aulinhas do que poderia sentir, mostrou pedaços do acessório e tudo. Tem que contextualizar os não dentistas.

Acho que tudo que expressei chorando baixinho na intervenção, botei pra fora na saída. Não consegui ir à farmácia (na véspera só achei um remédio nas três em que procurei) e nem no mercado (perto de casa tudo fica a algumas ribanceiras de distância, ou no shopping, mas ontem estava cansada até para as escadas rolantes dele). Fora que não é toda hora que tolero bem a consumolândia fútil vizinha, que fica do outro lado do rio. Meu marido me ajudou porque se fosse fazer tudo antes de voltar, não conseguiria segurar a compressa no rosto, retornando a pé — e a recomendação era usá-la nas primeiras 2 hs operada.

Processar o dentista anterior é bem típico de filha de Obá porque odiamos injustiça. No meio da tortura chinesa visualizei tatuar o ofá dos meus orixás no peito esquerdo. No peito denso dói? Na saída, vi que minha tatuadora me escreveu e voltei pensando alto:

  • Será que encaro?

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Francine Machado De Mendo
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Written by Francine Machado De Mendo

Brincante,professora de artes na EJA escritora,"gateira",contadora de histórias,nadadora viajante,escritora, macumbeira,pesquisadora e batuqueira.

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