A mulher revoada que habita em mim

Francine Machado De Mendo
3 min readFeb 9, 2023

A mulher revoada é inspirada nas “Ana Raio” da macumba. A mulher trovão deixei nos barracos mal sucedidos do jornalismo. A mulher ventania sobrou um pouco e ela compõe a mulher revoada. A mulher tempestade deve ser o ingrediente 2 da revoada, porque sempre batiza papeis e páginas com minhas águas salgadas — o que é um super poder e não uma fraqueza a ser escondida, como nos “desensinaram”. Gosto da imagem da mulher mar, que leva para longe o que já não pode mais ficar no mais fresquinho da areia. Valei-me! Carregou a insônia, as fantasias e raivas. Traga abundância e saúde! Evoé! Creio que a mulher cachoeira carregue a auto cobrança excessiva para longe. E a mulher rio desvie das piores pedras. Fica a minha mulher revoada: levanta poeira, reinventa caminhos, brinca com pedrinhas e flores por onde passa. Mas sempre, sempre precisa do movimento e escolher suas brigas e evitar piras.

Tomei contato com esses arquétipos da cultura iorubá na oficina Teatro da Encruzilhada: sobre a qual escrevi muito aqui. Não me percebi logo de cara mulher revoada. Na verdade me vi nela de um modo muito pouco ritualistico (algo que esta formação livre da Cia Teatro Documentário estimulou bem nos encontros da Bela Vista). Estava fazendo hidroginástica quando ouvi uma dessas músicas bregas de malhar. Sou dessas que quer saber mais da trilha no meio dos movimentos. Com minha veia dramaturga e meu coração meio candomblecista, meio budista e meio umbandista, reinventei o que ouvi: meu arquétipo de mulher revoada também aumenta os ventos se tiver que jogar para longe o que nos prejudica. Muito embora meu marido junguiano explique que não se ativa um arquétipo. De qualquer forma, tive que inventar “uma deusa, uma louca, uma feiticeira” pra dar conta de remar contra a maré no Brasil — que não é nem pra profissionais, que dirá pra amadores?

Todas essas mulheres com a força da natureza me acolheram em diferentes terreiros com amorosidade, especialmente quando ainda me punia com a lógica judaico-cristã com a qual nunca concordei. É acolhedor poder ser uma mulher de carne e osso, sem o peso de uma santa acima de nós. O encontro do pertencimento buscado ao longo de uma vida de cabeçadas em espiritualidades sustentadas pelo deus patrão. Longe de mim dar conta do deus pai irado!

A revoada tem suas temporadas meio assentada, meio estudando o terreno e recarregando forças — tem muito da minha yabá Obá. Usa os ventos ao seu favor e já sabe que muitas vezes é melhor ter paz a ter razão. Não empenha a força da natureza que também habita nela sem que valha a pena.

A mulher revoada percebe que seus ventos internos estão turbulentos e recria formas de pacificá-los — pelo improviso com a dança afro, por exemplo. Por isso mesmo se deixa encantar pelas letras que mal sabe se estão em iorubá, bantu ou ketu. Porque a ideia nessas horas não é ser cabeçuda mesmo — é tocar pelo sensivel, é transformar dor em beleza. Aparentemente nisso tem sido bem sucedida: uma amiga taróloga e jornalista que vive em Roma sentiu “como se voltasse para casa”. Esses ventos que não cabiam em mim tomaram rumos mais fluidos. Obviamente minha mulher revoada já percebe novos ventos internos perturbadores para fazer ganhar corpo. Ainda não sabe por onde começar, mas uma hora a poética da revoada ganhará forma. Já experimentou nas férias transitar da lagarta à borboleta, em paz, sabendo que está tudo encaminhado e que caso a semeadura não floresça, não faltou empenho nas tentativas. E quando sai desse estado confortável e relaxado na pele que habito, lembra que esse desencaixe não dura pra sempre — nunca durou. Enquanto isso vou respirando e me recompondo com minha banda budista. Porque a vida é muito complexa para uma religiosidade só.

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Written by Francine Machado De Mendo

Brincante,professora de artes na EJA escritora,"gateira",contadora de histórias,nadadora viajante,escritora, macumbeira,pesquisadora e batuqueira.

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